terça-feira, 22 de setembro de 2009

Depoimento sem Dano: consensos e dissensos

A criança tem o direito de formular seus próprios juízos e o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados a ela" e que os Estados Partes proporcionarão a ela "em particular, a oportunidade de ser ouvida em todo processo judicial ou administrativo que afete a mesma, quer diretamente, quer por intermédio de um representante ou órgão apropriado, em conformidade com as regras processuais de legislação nacional" (artigo 12 da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança)

Introdução
O depoimento à justiça de crianças e adolescente vítimas de violência sexual apresenta-se, muitas vezes, como uma forma de revitimização. Isto acontece porque essas crianças são expostas ao contato do agressor, que com frequência, é uma pessoa próxima ou pertencente à sua família. Nas audiências devem prestar depoimentos inúmeras vezes ao longo do processo judicial. São depoimentos à autoridade judicial, Conselho Tutelar, Ministério Público, Defensor Público, Delegacia especializada, Instituto Médico Legal, entre outros. Existem várias pesquisas demonstrando que esta exposição contínua acaba revitimizando a criança e o adolescente, expondo-as a um intenso desgaste emocional. Para amenizar este ciclo considerado revitimizador, idealizou-se o Depoimento sem Dano , que busca limitar o depoimento da criança e adolescente a uma única entrevista. O depoimento teria como objetivo a coleta antecipada de provas, atuando como prova testemunhal conhecida no âmbito jurídico como oitiva. Este depoimento seria realizado por uma pessoa designada pelo juiz, geralmente um psicólogo ou assistente social e seria feito, não na sala de audiência, mas em um ambiente diferente, em uma sala reservada para este único fim, onde seriam usados também recursos tecnológicos como câmaras filmadoras e equipamentos de gravação. Este contexto propiciaria um ambiente mais protegido, menos hostil, que não obrigaria a criança a estar frente a frente com seu agressor, além de restringir o depoimento a apenas um durante todo processo judicial.
Neste sentido o Depoimento sem Dano traz uma inovação que é o modo como se dá a coleta da prova; não na forma exclusivamente inquisitória, mas na forma de atendimento. Decorre daí a necessidade dele ser realizado por técnicos com formações diferenciadas, como são os psicólogos e os assistentes sociais. Desta maneira o atendimento buscaria garantir que esta coleta de provas não desrespeitasse os direitos da criança, principalmente no que se refere ao seu processo de desenvolvimento físico, psíquico e social. Justamente porque a criança e o adolescente são sujeitos em desenvolvimento, não teria sentido o sistema institucional responsável pela garantia desta proteção tornar-se violador destas mesmas garantias. Por isso, o Depoimento sem Dano surgiu para minimizar os efeitos possivelmente traumáticos da exposição e repetição demasiada da criança e adolescente aos trâmites judiciais necessários à condenação do agressor.
Dentro dos processos judiciais desta natureza é comum o depoimento da criança constituir a única prova contra o agressor. Isto se dá porque, muitas vezes, o abuso ocorre no interior das famílias, o que dificulta a produção de provas de outra natureza, que não a do testemunho da vítima, ou das pessoas da família. As duas formas habituais de coleta de provas nestes casos é a inquirição de testemunha ou vítima e exame pericial. Este contexto confere, portanto, grande importância ao cuidado que se precisa ter com relação ao depoimento da vítima.
Mas onde surgiu o Depoimento sem Dano?
Aqui no Brasil, este procedimento teve seu início, em 2003, no Rio Grande do Sul, especificamente na 2ª Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre, impulsionado pelo juiz José Antônio Daltoé Cezar que implementou este procedimento. O Governo Federal, por meio da Secretaria Especial de Direitos Humanos, a partir de 2006, passou a apoiar o projeto e a disseminar esta prática por outros Estados brasileiros, dentre eles São Paulo, com o acompanhamento do respectivo Tribunal de Justiça. Vários países no mundo inteiro aplicam o Depoimento sem Dano das mais diversas formas. Para que se tenha uma idéia do que ocorre em outros países vale a pena conhecer a publicação "Depoimento sem medo? - culturas e práticas não revitimizantes", organizada pela ABMP (Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude) e o Instituto Childhood Brasil, com apoio da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos (SEDH) e Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes (Conanda). Lá há o mapeamento da experiência em 25 países, dentre eles, Argentina e Cuba.
Há um projeto de lei da deputada federal Maria do Rosário (PT-RS) que está em trâmite pelo Senado Federal (PL n. 35/2007), que tem por objetivo incorporar o Depoimento sem Dano ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), conferindo-lhe legitimidade como um mecanismo jurídico que garanta proteção à criança e ao adolescente. Especialistas da área jurídica colocam que já existem mecanismos jurídicos que fundamentam este procedimento. No Brasil a coleta antecipada de provas está prevista em nosso Código Penal para todos os cidadãos. No entanto, a legitimação pela lei específica, ou seja, pelo ECAtraria maior segurança jurídica ao dispositivo, não podendo ser alegada qualquer nulidade.
Profissionais envolvidos
Os profissionais escolhidos para realizar a entrevista com as crianças e os adolescentes, em geral psicólogos e assistentes sociais, já teceram críticas ao procedimento. Um dos pontos levantados é que a atuação deles é percebida por eles como uma mera extensão da atuação do juiz. Não apresenta-se como um instrumento de construção conjunta, mas como ferramenta exclusivamente jurídica. O psicólogo e assistente social seriam meros mediadores das perguntas que o juiz faria às crianças e adolescentes. Para o psicólogo, por exemplo, o direito de não falar deve ser respeitado acima de qualquer outra coisa, na medida em que o silêncio pode representar a impossibilidade da criança elaborar aquela situação naquele momento. A obrigação de falar, esta sim causaria dano à criança. E o que acontece dentro deste procedimento é a necessidade de que a criança fale, ou seja, de que o seu discurso sirva de objeto ao sistema judicial para incriminar o abusador. Questiona-se, então: o direito da criança de se expressar corresponderia à obrigação de depor. Há também a queixa de que os profissionais da área jurídica atribuem uma hierarquia ao conhecimento jurídico, que estaria acima dos outros conhecimentos. Na verdade, no Depoimento sem Dano não haveria espaço para que os profissionais da área psicológica e da assistência social colocassem em prática seus próprios saberes e métodos.
Por outro lado, os profissionais da área jurídica defendem a necessidade de que o depoimento seja colhido por profissionais que tenham competência e técnica de entrevista e conhecimento sobre a problemática psicossocial do abuso sexual. Enfatiza-se que a palavra da criança é, muitas vezes, a única forma de quebrar o ciclo de impunidade em favor do agressor e neste sentido é importante haver um salutar debate entre os profissionais envolvidos para que suas diferenças possam ser compreendidas, contempladas no procedimento em favor da criança e do adolescente.
Conclusão
O Depoimento sem Dano é apoiado por diversas entidades da sociedade civil que pertencem ao Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente. Sistema este que propõe uma gestão das políticas públicas afinadas com os princípios do ECA. No caso do Depoimento sem Dano, a idéia principal é a elaboração de metodologias alternativas para inquirição de crianças e adolescentes nos processos judiciais, levando-se em conta que os procedimentos judiciais tradicionais não contemplavam esta perspectiva que se tem hoje da criança e do adolescente à luz do ECA e da Convenção Internacional dos Direitos da Criança.
Segundo dados da publicação Depoimento sem medo? - culturas e práticas não revitimizantes (pag.34):
"Uma análise da temporalidade das práticas de tomada de depoimento especial (Depoimento sem Dano - grifo nosso) indica que estas são muito recentes na história da Humanidade. As mais antigas datam da década de 1980, entre as quais estão aquelas registradas em Israel, Canadá e Estados Unidos, países pioneiros nesta prática..."
Outro dado interessante nesta pesquisa é que, apesar, de não ter sido um dos continentes pioneiros na prática do depoimento especial a América do Sul apresenta o maior número de experiências desenvolvidas atualmente, sendo que a Argentina constitui-se como uma forte referência para todos os países sul-americanos.
As experiências do depoimento especial evoluíram de forma lenta até 2000, porém nos últimos anos tem havido uma rápida irradiação por vários países em todos os continentes. Isto leva a crer que é um procedimento que tende a ser incorporado às práticas jurídicas, pela forma mais humanizada com que se propõe a pensar a participação da criança e do adolescente em processos desta natureza.
O Depoimento sem Dano vem sendo disseminado pelo Brasil e busca melhorar a qualidade do atendimento que é feito à criança e ao adolescente em casos tão extremados de violação como os são, os casos de abuso sexual e maus tratos. A possibilidade de punir o agressor passa pela efetividade do depoimento, fazendo-se necessários dispositivos que minimizem o sofrimento psíquico evidentemente presente neste tipo de caso. O debate sobre o Depoimento sem Dano está em aberto e merece ser aprofundado pelos vários setores da sociedade envolvidos na proteção à infância e adolescência.

Por Ana Beatriz Iumatti (psicóloga e colaboradora do Portal Pró-Menino)

A cartilha foi produzida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e deve ser utilizada por pessoas que vão preparar crianças e adolescentes para escuta no sistema de justiça. O livreto, que tem 18 páginas, traz uma explicação simples sobre a prática do depoimento sem danos e de como o público infanto-juvenil pode participar da produção de provas durante os procedimentos judiciais, sem que para isso precisem ter contato com os acusados.

Clique AQUI para obter a íntegra do documento

Fonte:Portal dos Direitos da Criança e do Adolescente

Para baixar o livro "Depoimento Sem medo?"
http://www.cedeps.com.br/wp-content/uploads/2009/08/Livro_DepoimentoSemMedo_compact.pdf

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Verbratec© Desktop.