segunda-feira, 8 de junho de 2009

Políticas são pensadas em função do crack

Reconquistar a cidadania é reconstruir a trajetória da pessoa

Novas políticas públicas e estratégias estão sendo pensadas para enfrentar a proliferação do crack

O crack hoje se impõe como um desafio para as políticas públicas. Não só pela quantidade, uma vez que o número de casos de alcoolismo é bem maior — e ocupa cerca de 70% dos atendimentos dos Centros de Atendimento Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD) — mas porque é preciso encontrar uma nova estratégia de atuação.
O que se observa pelas falas dos gestores é que ainda não se chegou a um consenso ou sabe lidar com as novas questões impostas pelo crack. Com certeza, todos, sem exceção, concordam em dois pontos: a família tem que participar e o tratamento é integral.
Apesar de uma política ampla para atendimento, o crack trouxe à tona e com força a discussão do internamento. O Orçamento Participativo da Juventude pediu em 2008 a criação de um Albergue Terapêutico para os jovens. Para atender a demanda, a Secretaria Municipal de Assistência Social (Semas), a Coordenadora de Juventude, a Fundação da Criança e da Família Cidadã (Funci) e a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) estão discutindo como implementá-lo. E ainda não entraram em um consenso porque não conhecem todas as dimensões desta droga.
Patrícia Queiroz, coordenadora do Programa de Prevenção e Redução de Danos, da Fundação da Criança e da Família Cidadã (Funci), chama a atenção para o grande número de crianças com pais adictos, além dos casos relacionados a violência física e psicológica. “Há casos em que o cartão do Bolsa Família fica empenhado com o traficante”.

Reivindicação

Afonso Tiago Nunes, coordenador da Juventude, ressalta que o OP da Juventude fez “uma reivindicação a mais” sobre a política de saúde mental que atende aos jovens com problemas com drogas. “Hoje já temos uma política pública de envergadura”, defende. Contudo, destaca que é um lugar de encaminhamento dos CAPS AD, não é internamento. Será para jovens que já estejam engajados em programas sociais que não dão conta dessa dimensão clínica. Contudo, diz quando o viciado quer sair, pede socorro à sociedade, e esta tem que mobilizar o máximo de pessoas para ajudar.
A Coordenadoria de Juventude aposta que a luta contra o crack tem que ter ajuda dos governos, sociedade civil, igrejas etc. E em novembro promove um congresso onde pretende chamar a sociedade para enfrentar o problema. Mas destaca que existe um problema de informação das pessoas, “porque a droga avançou mais rápido do que o conhecimento que se tem dela”. Destaca a dívida com a sociedade da divulgação dos problemas relacionados à droga, das pesquisas e os resultados alcançados.

Rane Félix, da Política de Saúde Mental da Prefeitura, afirma que os CAPS AD criados em 2005 vêm atender os princípios da política nacional de 2001, que preza por ações de saúde mental na atenção básica, CAPs, serviços residenciais terapêuticos, leitos em hospitais gerais, ambulatórios e programas de reintegração social. “O nosso trabalho não é só garantir o atendimento clínico, mas reconstruir a trajetória da pessoa, sua cidadania”.
INTEGRAÇÃO

Redes sociais dividem responsabilidades

Um dos projetos que ainda está no papel e vem direcionado especificamente para o crack é o “Aliança contra o crack”, que a Guarda Municipal enviou para Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) a ser implantado no Território de Paz do Bom Jardim. E quer atingir o público de jovens e adultos de 15 a 29 anos com conflito com a lei, apenado ou em situação de vulnerabilidade, utilizando arte, cultura, esporte, lazer e, principalmente, informação cidadã para o convívio social.
“O crack tem aumentado cada vez mais a incidência e promove uma degradação maior que outras drogas, assim precisa de uma ação mais rápida”, informa Edson Alves, da coordenação do Pronasci de Fortaleza. A organização não governamental Central Única das Favelas (CUFA) reivindica parte da idéia, pois tem feito um esforço para reunir o governo do Estado e sociedade civil para um trabalho conjunto. Inclusive tem tentado articular uma reunião conjunta com vários secretários, com esse fim.
Preto Zezé, o coordenador da Cufa Ceará, está organizando o lançamento de três produtos para alertar a população ao redor do tema: um vídeo, um livro e um CD. Sob o título Selva de Pedra: A Fortaleza Noiada, com lançamento do CD de Hip-hop já marcado para o dia 20 de junho, no Teatro Boca Rica. Ele espera que a sociedade se sensibilize para o combate à droga.

Multiplicadores
Outro embrião de rede social está sendo puxado pela Funci, que é a formação de multiplicadores em prevenção de danos nas comunidades, onde reúne pessoas dos postos de saúde, escolas, ongs, conselhos tutelares e da própria comunidade. Após os encontros, a própria comunidade é incentivar mini-redes sociais para tratar conjuntamente o problema.
Até o momento somente quatro comunidades estão sendo beneficiadas (Bom Jardim, lagamar, Floresta e São Cristóvão) e Patrícia Queiroz, do Nupred, admite que é pouco. Outra forma são as parcerias com as comunidades terapêuticas ou grupos de ajuda mútua como os Alcoólicos (AA) e Narcóticos Anônimos (NA).
ABORDAGEM
Viciado perde vínculo com o real
O crack é uma droga que provoca uma dependência química rápida e devastadora e a forma de tratar com este tipo de usuário está desafiando os setores de atendimento da saúde, educação, assistência social, juventude e segurança. A política de redução danos, que trata o usuário de drogas e álcool ainda durante o uso das substâncias, não se aplica ao crack, pois o viciado não raciocina e dificulta qualquer tipo de abordagem ou intervenção.
“Se antes, sete ou oito anos atrás, o discurso era que os programas sociais podiam conviver, embora de forma conflituosa, com o uso da droga, a partir do uso do crack ficou inviável”, afirmou o titular da Coordenadoria Especial de Políticas Públicas de Juventude da Prefeitura de Fortaleza, Afonso Tiago Nunes, há 11 anos trabalhando com o tema. O que enfatiza é que ao usuário sempre foi dado um itinerário formativo para uma reentrada ao convívio social e isso era suficiente para ajudar o adicto a sair da droga. “Com o usuário de crack, manter a assiduidade é mais complicado”.
O crack quebrou paradigmas de atendimento. Um deles é a própria eficiência da estratégia da saúde mental que é a redução de danos. Patrícia Queiroz, coordenadora do Programa de Prevenção e Redução de Danos, da Funci, tem a mesma opinião. “O usuário não consegue estudar, porque não se concentra e perde o interesse”. Relata as dificuldades do trabalho para redução de danos quando estão em uso. “Com o crack, nosso poder de intervenção é menor”.
Comenta que a abordagem possível gira em torno de situações urgentes, como alimentação, higiene, saúde ou abrigamento. Acredita que a situação é bem mais ampla, porque o vício leva a outras situações de exploração. “O preço da pedra está diminuindo, isso facilita o acesso”. Comenta que, agora, a droga é colocada no cigarro normal para durar mais.
Rane Félix, da Política de Saúde Mental da Prefeitura, diz que os usuários têm dificuldade de vincular ao serviço. “Para dar certo temos que propor ações tão prazerosas quanto à droga”, pontua ao falar das ações de arte, cultura e esporte, que potencializam a redução de danos. Nos casos de uso excessivo, ressalta que a internação para desintoxicação tem que ser feita em hospitais gerais. Diz que não existe em termos legais internação compulsória, o viciado não fica ´preso´ tem que querer ficar.
Contudo, admite que as unidades de saúde ainda estão se preparando para receber estas pessoas que serão encaminhadas ao CAPS AD, existe uma capacitação ainda tímida, a começar com palestras para os novos médicos e as equipes de matriciamento dos CAPS AD que vão aos postos de saúde discutir com a equipe estratégias de aproximação a partir de estudos de caso. “Existe ainda um estigma do usuário, uma culpabilização. Se o usuário quebrar um pé tem o mesmo direito de engessar. Temos que sair do discurso moralista para um discurso cidadão”. No caso da educação, a política da prefeitura fica ainda mais distante, apenas com palestras e oficinas de capacitação.
OMISSO
Estado não tem ação específica para centros de internação
O Governo do Estado ainda não tem política específica para o tema e, a partir dos seus funcionários, percebe-se que não sente mudanças aparentes com a escalada do crack. As unidades estaduais de internação de adolescentes em conflito com a lei, os centros educacionais, estão sobrecarregadas e os casos mais graves são enviados para a Comunidade Terapêutica São Pio, oficialmente conveniada e que só atende rapazes. Não há nenhum convênio que beneficie a população feminina, segundo a assessora técnica da Célula de Medidas Socioeducativas da Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS), Lucita Matos.
Os casos com parcerias e temáticas de consumo de dependência através de palestras e nenhum acompanhamento à luz dos CAPS. Marta Regueira Alves, psicóloga do Centro Educacional Patativa do Assaré, que tem 253 internos para um lugar em que caberiam 60, não vê qualquer alteração de comportamento após a internação entre viciados em crack ou em outras drogas.
“Quando o vício é orgânico é possível que saiam daqui sem ele. Mas há os que têm uma outra relação com a droga, a dependência psicológica e, quando saem, a gente orienta as famílias para os levarem para o CAPS”, diz. Essa transferência de responsabilidade passa, inclusive, pela ponta do processo, como na Unidade de Recepção Luis Barros Montenegro, onde os casos são encaminhados para os CAPS.
TRABALHO COMUNITÁRIO
Voluntários também sentem dificuldades
“Não atira não, que são as tias da igreja”. Assim um carro da Diaconia deixou de ser baleado por um grupo de adolescentes que o confundiu com um carro da Polícia durante um confronto recente no Jangurussu. Este é o dia-a-dia das organizações não governamentais e grupos de igrejas, que antes circulavam com um “salvo conduto” informal entre a comunidade, e hoje já sentem o reflexo do crack.
“É muito complicado, o crack vicia muito, é muito forte. Antes tinha um caminho da droga – cigarro, álcool, maconha, cocaína – e agora é direto no crack”, comenta Aurilene Vidal, da Pastoral do Menor do Ceará.Defende um repensar da política da redução de danos e uma outra abordagem para o tema, condena a estratégia da repressão e afirma que muitos adolescentes no Interior ainda são internados sob o ato infracional de uso de drogas. “Temos que trabalhar o fortalecimento da pessoa”.
Mara Carneiro, assessora comunitária do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca-Ceará) que desenvolve o projeto Reaja (Rede Articulação do Jangurussu e Ancuri), afirma que percebeu a mudança no trabalho. “O dinheiro do tráfico é maior do que as bolsas que nossos projetos sociais oferecem. A relação de poder do menino da boca é um objeto de desejo que deslumbra, propicia a auto-afirmação juvenil”, constata.
Mara aponta ainda outra mudança de paradigma, pois o traficante “amigo da comunidade”, porque trazia “benefícios” e evitava violências na vizinhança da sua boca, agora passou a inimigo. Ele é quem fornece o crack para os jovens. Agora os jovens usuários de crack são ameaçados de morte pelos comerciantes e moradores da comunidade.
A assessora afirma que desde 2006 já “perderam” 30 jovens, mortos por dívida, pelos comerciantes, briga ou overdose. E os que permanecem é uma batalha para conseguir uma simples vaga na escola, porque as diretoras não querem. Hoje o Cedeca tem 35 adolescentes ameaçados de morte e não conseguem se inserir na escola próxima à sua casa para que não rompam o territórios das gangues rivais. “Como tirar os meninos dessa vida?”, se pergunta.
Outro problema é a proliferação de bocas de fumo. Em um trabalho com os meninos do Jangurussu, Mara os distribuiu em cinco grupos distintos e pediu que fizessem um mapa intinerante de seu bairro e colocassem pontos positivos e negativos. Os cinco grupos separadamente identificaram todas as bocas de fumo. “Todos sabem onde está a droga. É muito fácil o acesso”.
Preto Zezé, da Central Única das Favelas (Cufa), que está fazendo um vídeo sobre o crack, afirma que a idéia começou quando viu a quantidade de casos nas comunidades em que trabalha, viu a rápida degradação pela droga e que os drogados não conseguiam se integrar. “Se for pra dizer essa droga em uma palavra, seria Segregação”.
Adriana Santiago
Editora de Reportagem


Diário do Nordeste

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