segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Prefeitura mapeia imigrante na cracolândia



O drama de viver na cracolândia, região no centro paulistano que funciona como a maior boca de fumo a céu aberto, já não é relatado somente em um idioma. Estrangeiros de todos os lugares estão cada vez mais misturados ao bloco de pessoas sem identidade, que andam enroladas em cobertores, com o cachimbo na mão, acendendo pedras de crack a qualquer hora do dia. Nos últimos dois meses, agentes da Secretaria Municipal de Saúde conseguiram contato com 16 deles - na tentativa de tirá-los da dependência - e o mapeamento mostra que as nacionalidades são típicas de Babel. Rússia, África, Arábia e América. Os quatro cantos do mundo chegaram à área mais devastada da capital paulista.
Os trajetos percorridos por eles até o cenário assolado pelo consumo de crack são variados. Mas sempre passam pela imigração ilegal e por condições de emprego precárias. "Quem vem para o Brasil ainda acha que vai encontrar samba, carnaval, futebol e trabalho. Termina na rua e no frio. A droga funciona como cobertor", diz o peruano Félix Rafael Morales, em São Paulo desde 2001. Ele chegou aqui com a promessa de serviço em telecomunicações. Perdeu o posto, não arrumou outro, só encontrou as ruas próximas da Avenida Paulista como abrigo, onde viveu por dois meses. Passou outros cinco anos "pulando de albergue em albergue". Conseguiu ser contratado pelo governo municipal para atuar como agente de saúde, com o foco no atendimento de estrangeiros que estão em situação de rua. "Hoje, em minhas abordagens, 80% deles sofrem com a dependência."
O sotaque gringo de Félix é uma das estratégias para tentar não espantar dependentes internacionais quando as equipes se aproximam. Se a abordagem já enfrenta resistência tradicional (a recusa ao atendimento supera 80%), entre os que já estão afetados pela alucinação da droga e ainda temem que a Polícia Federal possa prendê-los pela clandestinidade é ainda mais complicada.
Alguns dependentes passaram pela barreira da recusa e contam fragmentos de histórias. Como a de um africano de 47 anos, que há seis meses mora na Rua Dino Bueno, no centro. Ele, que diz já ter trabalhado como piloto de avião na África do Sul, veio ao Brasil tentar esquecer a vida solitária que levava em seu país. Em São Paulo, encontrou a companhia do crack e do álcool e agora tenta tratamento. Outro exemplo é o ex-guerrilheiro da Arábia Saudita, de 42 anos, que há uma década está nas ruas de São Paulo. A busca pela melhor qualidade de vida esbarrou no haxixe, depois na cocaína e agora sobrevive, aos trancos, com o crack.
A concentração dos imigrantes na região central e a consequente fuga deles para as áreas da chamada cracolândia tem explicação econômica, acredita um ex-delegado do Departamento de Investigações sobre Narcóticos (Denarc), da Polícia Civil - que preferiu não ser identificado. Os bares, restaurantes e pequenos comércios que no século passado existiam por causa da Estação da Luz, hoje, estão desertos. Os hotéis que ali existiam também foram deixados às traças. Os preços cobrados agora são muito baixos e as condições de higiene só são aceitas por imigrantes ilegais que não têm outra opção.
Não são esses os motivos exclusivos para os estrangeiros serem "recrutados" pela dependência química. "A saudade, o abandono, a distância formam um prato cheio para que eles acreditem que a droga é uma saída", afirma o padre Mário Jeremia, responsável pela Pastoral do Migrante. "Eles têm um espaço de convivência restrito, não têm oportunidade de diversão, enfrentam preconceito. Você não encontra um desses jovens em um shopping, por exemplo. A droga é atrativa."
O problema dos estrangeiros na cracolândia não cessa no vício. Muitos são utilizados como braço do tráfico, lembra Marcos Fuchs, que atua na instituição Conectas Direitos Humanos. "Os imigrantes são explorados de todas as formas. Não podem denunciar. Sair desse mercado clandestino e optar pelo comércio de droga é uma possibilidade que ilude." Ariel de Castro Alves, do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, diz que negligenciar políticas públicas para essa população é fomentar a violência em cadeia. "Eles ficam isolados na marginalidade e acabam caindo na criminalidade."

Fernanda Aranda



Estadão

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