quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Trabalho infantil em Portugal




Miúdos transportam cadáveres *

A actividade operacional está-lhes vedada por lei. Mas um pouco por todo o país há menores de idade a transportar doentes e mortos


O primeiro serviço ainda está fresco na memória. Ricardo Pimenta tinha 15 anos e estava de piquete no quartel dos Bombeiros Voluntários do Sul e Sueste. Tinham sido chamados para a remoção de um cadáver de alguém que tinha morrido em casa. Quando lá chegaram, viram "uma senhora caída com a massa encefálica à mostra. A polícia disse que já devia estar morta há quatro dias".
Ricardo conta o episódio num tom natural, sem inflexões. A distância temporal assim o permite. Passou mais de um ano desde esse "primeiro serviço". Agora estas situações "já não impressionam tanto", sussurra, esboçando um sorriso na cara imberbe. Conta que até brinca com uma colega sobre quem mais mortos recolheu. Mas na realidade, não foram tantos assim. Desde que deixou só de tocar caixa na fanfarra e passou a integrar o grupo de cadetes do quartel fez "apenas" quatro transportes para a morgue.
Este não é o tipo de serviço que agrade ao amigo e companheiro de aventuras, Fabian Raposo Diaz. Aos 17 anos, Fabian troca facilmente o clarim da fanfarra pela actividade operacional dos bombeiros, mas dispensa os que impliquem transporte de cadáveres. No único que diz ter feito, passou o tempo todo a trocar mensagens com a mãe via telemóvel, procurando "apoio moral". É a própria mãe, Maria, que nos relata que para o acalmar lhe dizia: "Lembra-te que a pessoa já faleceu e não te vai fazer mal". Orgulhosa do seu petiz, deixa um conselho: "Deixemos os nossos filhos aprenderem com a realidade da vida".
Ricardo e Fabian são adolescentes voluntariosos, mas sem a clara noção de que para "ajudar os outros" estão a violar a lei. Como eles, um pouco por todo o país há menores de idade a participar em operações que lhes são interditadas.
Ana (à esq) e Sílvia (no centro), de 13 e 17 anos, dos BV do Fundão, já acudiram a emergências, e a mais nova não esquece uma situação em que uma senhora lhe desmaiou nos braços
Desde Junho de 2007 que "é vedado o exercício de actividade operacional" aos infantes e cadetes dos bombeiros. Ou seja, estão proibidos de transportar doentes para uma consulta ou um tratamento hospitalar, de irem buscar pessoas que morreram em casa, deslocarem-se a uma situação de emergência ou ajudarem no combate aos fogos, mesmo como figuras de segunda linha.
Eles reagem de imediato: "Acha que gostaríamos de chegar ao quartel e ficar sempre em terra?", questiona Fabian. "É a ajudar os socorristas nos acidentes que aprendemos mais", garante Ricardo, argumentando que até já frequentaram cursos de socorrismo, mas não têm idade para fazer o exame.
O comandante dos BV do Sul e Sueste, António Reis, defende-se de responsabilidades quanto à operacionalidade dos seus nove cadetes: "Se saíram para emergências foi à revelia. Pela calada da noite enfiam-se nas ambulâncias". Admite apenas que eles fazem "serviço de rotina de transporte de idosos para o hospital" e que "por vezes acabam por apanhá-los mortos em casa". Por seu lado, os dois adolescente defendem o comandante com unhas e dentes como "responsável" e "sempre atento".
É assim com todos os menores contactados pelo Expresso. Sérgio e Marcos (ambos com 15anos), infantes dos BV do Dafundo também defendem o seu comandante, ao mesmo tempo que dizem que "sem a adrenalina, perdia o interesse". O comandante deles, Carlos Jaime, não compreende porque é que "nos bombeiros só podem levar uma pessoa ao hospital a partir dos 18, se o direito ao trabalho existe a partir dos 16 e podem ir para a tropa aos 17".
Para estes jovens a experiência é uma aprendizagem. "Crescemos como homens", sublinha Sérgio, cujo sonho é apagar fogos. O serviço mais emocionante que teve até agora foi o de ajudar a evacuar os doentes do Hospital S. Francisco Xavier na sequência de um incêndio. O amigo Marcos, não esquece a aflição que sentiu por não terem chegado a tempo ao socorro a uma menina de seis anos que se tinha cortado nos pulsos. "Impressionou-me pela aflição do motorista da ambulância e dos vizinhos".
"Nestas idades, os mecanismos de reacção à adversidade ou a capacidade de compreensão não são as mesmas que as de um adulto", explica Jorge Silva, psicólogo e bombeiro voluntário. O psicólogo desconhece qualquer situação de um adolescente traumatizado, mas acha que "não devemos colocar menores ao serviço da comunidade". E sublinha: "Um miúdo de 13 ou 15 anos estará sempre mais vulnerável do que um adulto".

Protecção Civil desconhece casos


Marcos e Sérgio, dos BV do Dafundo (ambos de 15 anos), dizem que a actividade dos bombeiros os faz «crescer como homens». Transportam doentes e participam em emergências
Questionada pelo Expresso sobre os casos de violação à lei, a Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC) esclarece que, desde que a lei entrou em vigor, "não recebeu quaisquer denúncias, nem foram detectadas quaisquer situações anómalas". E que, "se o comando distrital tivesse conhecimento de situações, seriam de imediato tomadas as medidas adequadas ao esclarecimento dos factos e respectivo procedimento, junto de quem tem a responsabilidade de zelar pelo cumprimento e aplicação da legislação".
Na realidade, alguns comandantes de corporações com quem falámos e que admitem abertamente que rapazes ou raparigas de 15, 16 ou 17 anos são terceiros elementos no transporte de doentes, parecem ignorar que esta actividade é uma das interditadas aos menores. Por exemplo, o comandante António Antunes, dos BV do Fundão, fala com naturalidade sobre apoio de segunda linha feito por cadetes com curso de socorrismo no transporte de doentes, "numa situação em que não tenha mais ninguém à mão". Mas garante que não envia nenhum para uma emergência: "Não os quero em stresse", justifica.
A sua cadete Sílvia, de 17 anos recorda o "primeiro acidente" aos 16 anos: "marcou-me ver o carro ao contrário e ver as pessoas todas ainda lá dentro". E até Ana, de 13, já tem aventuras para contar: "Fomos chamados para atender uma senhora que se tinha sentido mal porque o marido tinha morrido na véspera. A filha estava muito agitada e caiu-me nos braços".
Duarte Caldeira, presidente da Liga Nacional de Bombeiros, quer "desmistificar a ideia de que se utiliza mão-de-obra de jovens por falta da de adultos". E está convicto de que "está em vias de extinção a utilização de jovens para tarefas para as quais não têm idade, nem enquadramento legal". Mas admite que "não possa excluir a existência de más práticas em alguns corpos de bombeiros".

PONTOS DE VISTA

"Os menores de 18 anos não devem, nem podem, ser voluntários", afirma a presidente do Conselho Nacional para a Promoção do Voluntariado. Elza Chambel garante que não deixaria as suas netas de 9 e 13 anos sequer participar nas acções de recolha de alimentos do Banco Alimentar, pois existe o "problema do risco". A lei indica que só podem beneficiar do seguro social voluntário os maiores de 18 anos. E lembra: "A gente mais nova é muito voluntariosa, extremamente impulsiva e sem redutores mentais" e "somos muito facilitadores".
O DL nº247/2007 diz que o universo de recrutamento de infantes é feito entre os 6 e os 16 anos e o de cadetes entre os 16 e os 18 anos. Uns e outros integram a apólice de seguros do quadro de reserva e não podem ter actividade operacional. As escolas de cadetes e infantes têm uma função lúdica ligada à cultura de protecção e socorro. Tal como nos programas de voluntariado do Instituto Português da Juventude, a adesão de menores de 18 anos implica a autorização dos pais por escrito.
"Há comandantes de bombeiros que deixam passar estas situações (de cadetes a fazerem serviços operacionais) porque não têm homens suficientes. O voluntariado está em crise", argumenta Fernando Curto da Associação de Bombeiros Profissionais.

QUANTOS SÃO

2686 jovens com menos de 18 anosestão inscritos oficialmente como cadetes (16-18 anos)e infantes (6-16 anos) nas corporações de bombeiros voluntários

7,7% é a percentagem que ocupam no conjunto total de homens e mulheres inscritos nos bombeiros voluntários. Os operacionais adultos são 34.753

546 jovens estão registados como infantes e cadetes no distrito de Lisboa


QUATRO PERGUNTAS A AMÂNDIO TORRES

Director da Autoridade Nacional de Protecção Civil

Porque é que um menor de 18 anos não deve ter actividade operacional?
O ingresso no quadro activo é feito aos 18 anos. Formalmente, tem que ver com a formação que é necessário ter. Podem fazê-la aos 17 anos, mas só podem realizar as provas aos 18.

Desde que a lei entrou em vigor nunca detectaram situações anómalas? Isso não significa que elas não existem?
Nós não detectámos qualquer situação anómala. O nível de inspecção é fortíssimo. Há bastante tempo havia algum facilitismo nesta área. Agora não.

Que medidas vão tomar perante as situações que encontrarem?
Vamos apurar os factos e ver se há razão para processos disciplinares.

Há comandantes que dizem que se os miúdos saem em actividade operacional é "à revelia". O que pensa deste tipo de resposta?
Um funcionário não faz nada à revelia. Não é resposta que um comandante dê.

Fonte: Expresso Portugal

*Esta postagem encontra-se na língua original

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