segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Saudade...


Artigo do Dr. Rogério Brandão
Médico oncologista clínico
RC Recife Boa Vista


Médico cancerologista, já calejado com longos 29 anos de atuação
profissional, com toda vivência e experiência que o exercício da
medicina nos traz, posso afirmar que cresci e me modifiquei com os
dramas vivenciados pelos meus pacientes.

Dizem que a dor é quem ensina a gemer.

Não conhecemos nossa verdadeira dimensão, até que, pegos pela
adversidade, descobrimos que somos capazes de ir muito mais além.
Descobrimos uma força mágica que nos ergue, nos anima, e não raro, nos
descobrimos confortando aqueles que vieram para nos confortar.

Um dia, um anjo passou por mim...

No início da minha vida profissional, senti-me atraído em tratar
crianças, me entusiasmei com a oncologia infantil. Tinha, e tenho ainda
hoje, um carinho muito grande por crianças. Elas nos enternecem e nos
surpreendem como suas maneiras simples e diretas de ver o mundo, sem
meias verdades.
Nós médicos somos treinados para nos sentirmos "deuses". Só que não o
somos! Não acho o sentimento de onipotência de todo ruim, se bem dosado.
É este sentimento que nos impulsiona, que nos ajuda a vencer desafios, a
se rebelar contra a morte e a tentar ir sempre mais além. Se mal dosado,
porém, este sentimento será de arrogância e prepotência, o que não é
bom. Quando perdemos um paciente, voltamos à planície, experimentamos o
fracasso e os limites que a ciência nos impõe e entendemos que não somos
deuses. Somos forçados a reconhecer nossos limites!
Recordo-me com emoção do Hospital do Câncer de Pernambuco, onde dei meus
primeiros passos como profissional. Nesse hospital, comecei a freqüentar
a enfermaria infantil, e a me apaixonar pela oncopediatria. Mas também
comecei a vivenciar os dramas dos meus pacientes, particularmente os das
crianças, que via como vítimas inocentes desta terrível doença que é o
câncer.
Com o nascimento da minha primeira filha, comecei a me acovardar ao ver
o sofrimento destas crianças. Até o dia em que um anjo passou por mim.
Meu anjo veio na forma de uma criança já com 11 anos, calejada porém por
2 longos anos de tratamentos os mais diversos, hospitais, exames,
manipulações, injeções, e todos os desconfortos trazidos pelos programas
de quimioterapias e radioterapia.
Mas nunca vi meu anjo fraquejar. Já a vi chorar sim, muitas vezes, mas
não via fraqueza em seu choro. Via medo em seus olhinhos algumas vezes,
e isto é humano! Mas via confiança e determinação. Ela entregava o
bracinho à enfermeira, e com uma lágrima nos olhos dizia: faça tia, é
preciso para eu ficar boa.
Um dia, cheguei ao hospital de manhã cedinho e encontrei meu anjo
sozinho no quarto. Perguntei pela mãe. E comecei a ouvir uma resposta
que ainda hoje não consigo contar sem vivenciar profunda emoção.
Meu anjo respondeu:
- Tio, disse-me ela, às vezes minha mãe sai do quarto para chorar
escondido nos corredores. Quando eu morrer, acho que ela vai ficar com
muita saudade de mim. Mas eu não tenho medo de morrer, tio. Eu não nasci
para esta vida!
Pensando no que a morte representava para crianças, que assistem seus
heróis morrerem e ressuscitarem nos seriados e filmes, indaguei:
- E o que morte representa para você, minha querida?
- Olha tio, quando agente é pequena, às vezes, vamos dormir na cama do
nosso pai e no outro dia acordamos no nosso quarto, em nossa própria
cama não é?
(Lembrei minhas filhas, na época crianças de 6 e 2 anos, costumavam
dormir no meu quarto e após dormirem eu procedia exatamente assim.)
- É isso mesmo, e então?
- Vou explicar o que acontece, continuou ela: Quando nós dormimos, nosso
pai vem e nos leva nos braços para o nosso quarto, para nossa cama, não
é?
- É isso mesmo querida, você é muito esperta!
- Olha tio, eu não nasci para esta vida! Um dia eu vou dormir e o meu
Pai vem me buscar. Vou acordar na casa Dele, na minha vida verdadeira!
Fiquei "entupigaitado". Boquiaberto, não sabia o que dizer. Chocado com
o pensamento deste anjinho, com a maturidade que o sofrimento acelerou,
com a visão e grande espiritualidade desta criança, fiquei parado, sem
ação.
- E minha mãe vai ficar com muitas saudades minha, emendou ela.
Emocionado, travado na garganta, contendo uma lágrima e um soluço,
perguntei ao meu anjo: - E o que saudade significa para você, minha
querida?
- Não sabe não tio? Saudade é o amor que fica!
Hoje, aos 53 anos de idade, desafio qualquer um dar uma definição
melhor, mais direta e mais simples para a palavra saudade: é o amor que
fica!

Um anjo passou por mim...

Foi enviado para me dizer que existe muito mais entre o céu e a terra,
do que nos permitimos enxergar. Que geralmente, absolutilizamos tudo que
é relativo (carros novos, casas, roupas de grife, jóias) enquanto
relativizamos a única coisa absoluta que temos, nossa transcendência.
Meu anjinho já se foi, há longos anos. Mas me deixou uma grande lição,
vindo de alguém que jamais pensei, por ser criança e portadora de grave
doença, e a quem nunca mais esqueci. Deixou uma lição que ajudou a
melhorar a minha vida, a tentar ser mais humano e carinhoso com meus
doentes, a repensar meus valores.
Hoje, quando a noite chega e o céu está limpo, vejo uma linda estrela a
quem chamo "meu anjo, que brilha e resplandece no céu. Imagino ser ela,
fulgurante em sua nova e eterna casa.

Obrigado anjinho, pela vida bonita que teve, pelas lições que ensinaste,
pela ajuda que me deste.

Que bom que existe saudades! O amor que ficou é eterno.

FILHAS: FELIZ DIA DAS CRIANÇAS
DESCULPEM MINHA AUSÊNCIA PROMOVIDA PELO APARATO INCOMPETENTE QUE NOS
AFASTOU.

Foto: Olhares.com

Um comentário:

  1. Parabéns a você porque teve ouvidos para escutar e aproveitar esta linda lição para o resto da vida. Você, a pessoa certa que estava no lugar e na hora certa. Bjs

    ResponderExcluir

Verbratec© Desktop.