domingo, 17 de maio de 2009

O que dizer às mães de Gilmar e Carlos?



Perdão por ter causado a morte de seus filhos em segundos. Perdão por ter destruído, a 190 quilômetros por hora, o carro onde estavam Gilmar Yared, de 26 anos, e Carlos Murilo de Almeida, de 20. Eu tinha bebido muito. Perdão por não me lembrar de que existe Lei Seca. Perdão por não ter deixado de dirigir, mesmo com 130 pontos na carteira e 23 multas por excesso de velocidade. Perdão por ter violado as leis dos homens. Perdão pela Justiça, que não me punirá porque sou deputado e tenho foro privilegiado.

Ele é boa-pinta. Poderia ser ator. Mas o paranaense Fernando Ribas Carli Filho decidiu candidatar-se a deputado porque o pai é prefeito de Guarapuava, no Paraná, e o tio também é parlamentar. Carli Filho tem 26 anos, a mesma idade de um dos rapazes mortos no terrível acidente da madrugada do dia 7 de maio numa avenida de Curitiba. Yared era estudante de psicologia. Carlos Murilo trabalhava no cinema de um shopping havia cinco meses. Tiveram morte instantânea. Uma testemunha, Alice Brás, viu da janela de casa. Disse que o carro do deputado estava tão veloz que decolou e passou por cima do outro. Pedaços dos carros ficaram espalhados na rua por 100 metros. O carro das vítimas virou uma massa retorcida, sem teto e sem uma porta.

Acidentes acontecem. Alguns são fatalidade. “Este foi um crime”, disse o pai de Yared, Gilmar. Desde julho do ano passado, o deputado estadual Carli Filho (PSB) tinha perdido sua carteira de habilitação. Mas estava se lixando para esse detalhe.

“Perguntei por que não foi feito exame de dosagem alcoólica e me disseram que o deputado estava tomando medicamentos e era preciso ter autorização. No meu filho, fizeram o exame sem autorização”, disse Cristiane Yared. Dosaram a bebida somente dos mortos. Cristiane não se surpreendeu com o boletim dos bombeiros. Eles sentiram “hálito etílico” em Carli Filho na hora do resgate. “Nenhuma pessoa em sã consciência pode dirigir com aquela velocidade”, disse ela.
Talvez Cristiane esteja enganada. Ou o deputado bebe demais sempre, ou é capaz de dirigir tresloucadamente, mesmo sóbrio e em sã consciência. Em três de suas 30 multas, foi flagrado pelo radar com 50% acima da velocidade permitida. Apenas em um dia, 28 de setembro do ano passado, foi multado quatro vezes por excesso de velocidade em pouco mais de duas horas. E pensar que Carli Filho é autor de projeto de lei que prevê benefícios para bons motoristas.

O deputado envolvido num acidente de carro com a carteira suspensa deve perdão à família dos mortos

A família Yared pediu a cassação do deputado por “quebra de decoro parlamentar”. Despido do mandato, ele perde o direito ao foro privilegiado e vai a júri popular. É o início de uma luta cheia de dores, frustrações e lágrimas, que não trará seu filho de volta. Uma luta contra padrinhos importantes: o governador do Paraná, Roberto Requião, teria mandado jatinho do Estado levar o deputado para o Hospital Albert Einstein, em São Paulo.
O presidente da Assembleia Legislativa do Paraná, Nelson Justus, pediu que se apure “eventual quebra de decoro parlamentar”. O regimento interno exige de deputados conduta exemplar dentro e fora da Casa. Mas tem parlamentar que se lixa para isso.
Se Carli Filho não perder o mandato, as investigações serão feitas pelo Poder Judiciário. O promotor do Ministério Público estadual, Rodrigo Chemin, confirmou a embriaguez do deputado, documentada por testemunhas. Uma semana após o acidente, o sangue do deputado ainda não tinha sido analisado.
Todos nós, até o julgamento, somos inocentes. Mas esses dois rapazes não estariam mortos se o deputado agisse corretamente. Perdeu a carteira? Faça novo exame, contrate um motorista. Dinheiro para isso ele tem.
Essa tragédia também precisa provocar reflexões sobre o foro privilegiado. Se for para manter o privilégio, que seja em delitos menores, sem mortes.
O deputado Carli Filho respira sem a ajuda de aparelhos e passa por exames clínicos e neurológicos. Na sexta-feira, não havia previsão de alta. Ele fará cirurgias para reconstrução da boca e da face. Quem sabe, junto, os médicos reconstruam sua consciência. E ele peça perdão às mães de Gilmar e Carlos.

RUTH DE AQUINO


ÉPOCA

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