terça-feira, 17 de novembro de 2009

Após dois anos, Médicos Sem Fronteiras se prepara para deixar o Complexo do Alemão


RIO - Quando o menino de 10 anos chegou, sozinho, à unidade do Médicos Sem Fronteiras no Complexo Alemão e pediu para ser levado a um Conselho Tutelar, os psicólogos perceberam na hora que estavam diante de um caso incomum. A criança morava na comunidade e não apresentava qualquer indício de maus-tratos. O problema, diagnosticado na entrevista de triagem, era, como definiu a psicóloga Fabiana Gaspar, de "abandono afetivo" pela mãe, cujas preocupações haviam se voltado exclusivamente para o filho mais velho, envolvido com o tráfico. O caso impressionou não só Fabiana, que recebeu a criança, como o outro psicólogo da equipe, Douglas Khayat, que passou a atender a mãe.
- Esse menino não queria mais ir à escola e estava a ponto de fugir para a rua. Então trabalhamos no sentido de resgatar o desejo de estudar e para que a mãe também reinvestisse naquele filho. No final, recebemos uma carta da professora do garoto, falando de como ele estava motivado novamente - conta Fabiana.
Casos assim tendem a se tornar ainda mais raros, pois o Médicos Sem Fronteiras se prepara para deixar o Complexo do Alemão, no dia 28 de novembro. Após dois anos - e quase 20 mil atendimentos médicos - dentro de uma das comunidades mais violentas do Rio, a ONG francesa, presente em mais de 60 países, irá manter na cidade apenas o seu escritório, em Laranjeiras, que continuará recrutando e treinando equipes e arrecadando recursos.
O término das atividades no Alemão estava previsto por contrato desde 2007; a incógnita é como passará a ser feito o atendimento médico àquela comunidade, que sequer recebe ambulâncias do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). A única que entra no local pertence ao Médicos Sem Fronteiras.
- Nosso compromisso sempre foi de dois anos, e depois o prédio deverá fazer parte do sistema público de saúde da cidade. Não temos mandato para substituir o estado; somos uma organização de emergência. Nosso papel não é resolver os problemas; queremos reduzir o impacto sobre a taxa de mortalidade e aliviar o sofrimento. Não temos opinião política ou social, só sobre saúde - afirma Tyler.
No Complexo do Alemão, o serviço médico que a ONG ofereceu teve a particularidade da Saúde Mental, trabalhada também de modo emergencial. A intensa guerra entre traficantes durante boa parte do ano de 2007 - que culminou com a morte de 19 pessoas num único dia, numa megaoperação policial - despertou no Médico Sem Fronteiras a necessidade de realizar no local um acompanhamento psicológico para as vítimas da violência. O trabalho desenvolvido é chamado de "terapia breve": os pacientes têm direito a, no máximo, dez sessões individuais. A abordagem dos psicólogos, sem prescrição de remédios, é altamente focada e prática, como explica Fabiana.
- Na entrevista (de triagem) nós já levantamos os pontos em que podemos atuar. A ideia não é trabalhar muitas questões, até porque elas vão sempre existir. Focamos no que está impedindo aquela pessoa de se desenvolver. Por exemplo: atendemos uma jovem adulta que vinha há muitos anos sofrendo violências físicas e psicológicas pelo marido. Ela vivia praticamente presa em casa, só saía para levar as filhas à escola, sem ter contato com mais ninguém. Com o tratamento, ela encontrou seu "poder": arrumou um emprego e adquiriu a autonomia econômica que precisava para se separar daquele marido.

Mulheres e crianças formam quase a totalidade dos pacientes

Com dias reservados para a triagem e para os atendimentos, a fila de espera por novas consultas não dura mais que duas semanas.
- Do contrário, iríamos engessar o tratamento, cairíamos na dinâmica da estrutura pública - comenta a psicóloga.
Os moradores chegam à unidade médica estimulados por agentes sociais que vão de porta em porta divulgando os serviços MSF. Pela imersão que têm na região, os agentes também costumam alertar sobre os casos em que é necessário o resgate via ambulância. Ao todo, a equipe da ONG que atua diretamente na comunidade reúne cerca de 40 pessoas, que trabalham em dois turnos, de segunda a sábado. Aos psicólogos, cabe não apenas atender às vítimas do chamado "estresse pós-traumático", como encaminhar a hospitais públicos os casos psiquiátricos não relacionados a violência.
A grande maioria dos pacientes que procuram o serviço de Saúde Mental é composta por mulheres, cuja queixa principal, diz Fabiana, é a violência doméstica. Em segundo lugar no ranking de atendimento dos psicólogos estão as crianças (sempre acompanhadas pelos responsáveis no momento da primeira entrevista), apresentando comportamento agressivo e, principalmente, dificuldade de aprendizado. Nestes casos, o atendimento dos psicólogos costuma se voltar também para os próprios professores.
- Há uma escola municipal dentro da favela que ficou literalmente no meio do fogo cruzado entre traficantes e policiais. Não houve mortos dentro dela, mas muitas pessoas ficaram feridas, inclusive psicologicamente. Os professores ficaram com medo de voltar a trabalhar, e as crianças tiveram dificuldade de aprendizagem. Mas tivemos um bom resultado com o tratamento - diz a psicóloga.

Funcionamento diário gerou confiança por parte da comunidade

A saída do MSF do Complexo do Alemão coincide com o momento de intensificação dos conflitos pelo comando do tráfico de drogas nas favelas da Zona Norte do Rio. Desde que um helicóptero da PM foi derrubado por traficantes que tentavam invadir o Morro dos Macacos, no dia 17 de outubro, a polícia tem realização operações diárias para prender os participantes do atentado. Investigações indicam que o mentor da invasão, o bandido Fabiano Atanázio da Silva, conhecido como FB, estaria escondido no Complexo Alemão. Semanas antes do ataque ao helicóptero, porém, a presidente da Comissão de Segurança da Câmara Federal, deputada Marina Maggessi (PP-RJ), havia acusado o governo do Rio de fazer vistas grossas à presença de criminosos no Alemão. Segundo a deputada, a polícia deixou de fazer incursões na região para não atrapalhar o andamento das obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
Alheia à polêmica, a psicóloga Fabiana faz um balanço positivo deste dois anos de atuação dentro da favela:
- No começo, tínhamos medo de as pessoas não quererem falar sobre violência. Mas percebemos que elas já viviam cercadas por silêncios; são histórias que elas não comentam entre si, nem podem levar ao poder público. Então, na verdade, elas estavam ansiosas para falar. E o fato de estarmos lá todos os dias, o dia todo, deu a confiança que aquelas pessoas precisavam para se abrir.

Fonte: Globo

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