segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Crianças e adolescentes indígenas ganham visibilidade com alterações propostas ao ECA


O ECA ainda precisa avançar em alguns pontos. Entre as deficiências, a ausência de uma legislação específica para a criança e adolescente indígena é tida como um dos fatores cruciais. Agora algumas propostas começam a surgir no Congresso
Por: Denise de Quadros

Os movimentos sociais de defesa dos direitos da Criança e do Adolescente têm percebido nos últimos anos a necessidade de construir políticas públicas que atendam, de modo mais específico, às crianças e adolescentes indígenas. Este público tem estado quase sempre à margem das políticas públicas e invisível às estatísticas. Embora tenha como princípio o respeito à diversidade cultural das crianças e adolescentes brasileiros o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) tem gerado, muitas vezes, conflitos e preconceitos na sua aplicação junto aos povos indígenas, em lugar de garantir a sua proteção, como se propõe.
Benedito dos Santos, secretário executivo do Conanda e que participou do grupo que elaborou o Estatuto há 19 anos, lembra que o ECA representou um avanço fantástico para o contexto em que o País se encontrava, e que não havia ainda, naquele momento, espaço para contemplar a questão da diversidade dos povos indígenas ou quilombolas, por exemplo. “O fato de declarar que a criança tinha direito a ter direito já era uma novidade muito grande. Além disso, enfrentávamos a resistência de muitos setores. Nessa perspectiva de ter que encarar uma luta coletiva do direito da criança, algumas nuances se perderam e somente agora estão voltando à tona”, lembra. Para ele, hoje só existe uma forma de universalizar os direitos das crianças e dos adolescentes: a aplicação do Estatuto deve respeitar a diversidade das culturas indígenas e tradicionais.
Apesar de estar em vigor há 19 anos, o ECA ainda precisa avançar em alguns pontos. Entre as deficiências, a ausência de uma legislação específica para a criança e adolescente indígena é tida como um dos fatores cruciais. Agora algumas propostas começam a surgir no Congresso. Recentemente foi aprovada a lei 12.010, de 03 de agosto de 2009, que altera a lei 8.069, de 13 de julho de 1990, ECA. Com a alteração na lei, que entrou em vigor dia 03 de novembro, foi possível inserir um novo capítulo no Estatuto, que trata especificamente da questão da adoção da criança indígena. De acordo com o secretário-executivo do Conanda, por muito tempo se debateu sobre qual seria o melhor caminho: inserir questões relativas ao direito da infância no Estatuto do Índio ou levar os aspectos específicos da criança indígena para dentro do ECA. “Parece que estamos caminhando nessa direção, de que devemos ter políticas para crianças e adolescentes no País, incluindo a criança indígena”, observa.
A lei 12.010, em seu artigo 28, capítulo 6º, não aborda, ainda, todos os aspectos considerados essenciais a esses povos, mas de acordo com o Procurador-Geral da Fundação Nacional do Índio (Funai), Antônio Marcos Guerreiro Salmeirão, já pode ser considerado um grande avanço. Segundo ele, o órgão vem há certo tempo pleiteando leis que contemplem a criança e o adolescente indígena, uma vez que, por viverem numa cultura cheia de peculiaridades e muito diferente da nossa, acabam se tornando mais vulneráveis.

Projeto de Lei que redundou na alteração do ECA será votado ainda este mês

Atualmente tramita na Comissão de Assuntos Sociais, com previsão para ser votado ainda este mês, o Projeto de Lei do Senado (PLS) 295/2009, protocolado em 30/06/2009, de autoria do senador Aloizio Mercadante (PT-SP), e que foi construído em conjunto com o Conanda. O texto acrescenta dispositivos à lei 8.069, que dispõe sobre os direitos da Criança e do Adolescente indígenas, alterando o ECA. Entre os dispositivos destaca-se o que orienta que em caso de ameaça à vida ou a integridade física da criança ou adolescente indígena haverá o encaminhamento adequado à sua proteção, além de outros que tratam sobre a cultura indígena.
Benedito avalia que mesmo com as alterações previstas no PLS 295, ainda existem outros aspectos que precisam ser analisados futuramente. De todo modo, uma diretriz é bastante clara para o Conanda: o ECA precisa incorporar a diversidade, e a política da infância e da adolescência no Brasil precisa considerar a política indígena.
Essa é a primeira vez que um Projeto de Lei é elaborado tendo em vista a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata sobre povos indígenas e tribais em Países independentes. A convenção em seu artigo 6º determina que os governos deverão consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, pelas suas instituições representativas, sempre que se tenham em vista medidas legislativas ou administrativas capazes de afetá-los diretamente. Neste sentido, o PLS 295 traz uma solução que busca alternativas, juntamente com as comunidades indígenas, visando a proteção de suas crianças e adolescentes baseada em ações educativas e preventivas.
Sobre esses povos, vale ressaltar que a concepção de família indígena está fundamentada no conceito de família extensa, ou seja, que compreende uma rede de parentesco na qual os compromissos e responsabilidades com relação à educação, formação e proteção das crianças e adolescentes são atribuídos não apenas aos pais, mas à coletividade. O PLS 295 avança na perspectiva de colocar obstáculos na questão da adoção de crianças indígenas por terceiros e para fora do País e enfatiza a adoção na rede de parentesco indígena, ou seja, a família extensa.
De acordo com Salmeirão, da Funai, o Projeto de Lei conseguiu avançar bastante, pois trata de toda a temática indígena desde educação, cultura, medidas socioeducativas, adoção até a questão da prática cultural conhecida por infanticídio. Em relação a este tema, Benedito dos Santos explica que a proposta construída com o apoio do Conanda, promoveu um diálogo entre os povos que ainda mantém essa prática com aqueles que já a aboliram. Dessa forma, a mudança cultural tem como base as experiências das próprias populações indígenas. “Não será mais uma imposição ocidental sobre as culturas tradicionais”, afirma. O infanticídio, em algumas culturas indígenas, tem como origem os conflitos entre diferentes etnias, quando toda a aldeia precisava ser saudável para, se necessário, correr e fugir.
Pelo projeto, uma equipe multidisciplinar constituída pela Funai e Ministério Público fará o acompanhamento das comunidades e das famílias com crianças em risco, a fim de dissuadi-los da prática. Salmeirão explica que o trabalho de convencimento das comunidades indígenas já é feito. “Não sendo possível fazê-los desistir, a criança será retirada e encaminhada para a adoção ou tratamento. Já temos a experiência, nesse sentido, em que, após tratada, a família aceita a criança de volta”, aponta.
Conselhos Tutelares - Outro aspecto importante diz respeito aos Conselhos Municipais e Estaduais dos Direitos da Criança e do Adolescente e aos Conselhos Tutelares dos municípios onde existam comunidades indígenas, que deverão estimular a presença de seus representantes nos respectivos conselhos, bem como garantir a participação dos membros dessas comunidades nos processos de escolhas dos conselheiros. E mais, esses conselhos deverão observar os usos, costumes, tradições e organização social de cada povo indígena. Caberá aos poderes públicos federal, estadual e municipal inserir os conselheiros em programas de capacitação para que tenham conhecimento da realidade sociocultural indígena. Os Poderes também deverão contemplar ações de promoção, proteção e defesa das crianças e adolescentes indígenas nos seus ciclos orçamentários, conforme o princípio da Constituição Federal.
De acordo com Benedito, já está em desenvolvimento um projeto piloto, no estado de Mato Grosso do Sul, que formou, em agosto, a primeira turma de conselheiros indígenas de 40 áreas do estado. “É necessário tirar essas crianças da invisibilidade. Um primeiro esforço nesse sentido já foi feito com essa equipe de conselheiros tutelares indígenas que está preparada para atuar, mas essa formação do conselho tutelar deve ser continuada”, aponta.
Quanto às medidas de proteção e socioeducativas aplicáveis a crianças e adolescentes indígenas, elas serão compatibilizadas, tanto quanto possível, com os costumes, tradições e organização social da sua comunidade. São diversas as situações envolvendo crianças e adolescentes indígenas em que a comunidade tem plena condição, a partir de deliberações internas, de apresentar soluções. Por outro lado, deverão ser observadas também as especificidades decorrentes do contato com a sociedade não-indígena, principalmente no que concerne à necessidade de compreensão das alterações do meio-ambiente físico e social, que determinam novas exigências e novos problemas que o modo tradicional, muitas vezes, não consegue equacionar. O Conanda tem incentivado os conselhos tutelares ao aplicar as medidas de contenção às crianças e adolescentes indígenas que negociem com as lideranças, de forma a colocar na mesa de negociação duas formas de solucionar o conflito, uma vez que, a forma com que o indígena pune quem transgride as normas é diferente da forma que nós punimos.
O Procurador-Geral da Funai, diz que levar a aplicação do ECA ao conhecimento das comunidades indígenas é muito importante, pois, segundo ele, os indígenas também querem proteger suas crianças e adolescentes. “Eles querem que os direitos sejam cumpridos e mais que isso, os próprios indígenas têm suas medidas punitivas e sancionatórias”, afirma. Para ele, a melhor medida socioeducativa é aquela dá a oportunidade de reeducar, trabalhar e ter uma formação social. Em sua opinião, o encarceramento nunca é a melhor opção. “Ainda mais para uma criança indígena, acostumada a viver livre na aldeia e que tem necessidade de contato com a terra, com a natureza, com a comunidade”, observa. Benedito conclui ressaltando que é preciso, neste momento, discutir a responsabilização de adolescentes indígenas que cometam ato infracional. Mas que para isso, se faz necessário uma negociação, um estudo maior das formas atuais de punição. Ele diz, que o grande desafio é saber como as nossas leis podem dialogar com dois modeles diferentes de punição: o das populações indígenas e o da sociedade ocidental. “Então, tudo o que for construído em se tratando de normas deve ser construído em cima de um diálogo profundo que respeite as diferenças”, finaliza.

Fonte: Andi

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