domingo, 1 de novembro de 2009

Aplicabilidade da Lei Maria da Penha nas relações de trabalho

A Lei Federal 11.340/2006 cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, foi nomeada como Lei Maria da Penha. O dispositivo trouxe uma essencial e excepcional providência cautelar, a repercutir no âmbito das relações de trabalho e seguridade social.
O artigo 9º, parágrafo 2º, inciso II, desse estatuto dispõe o seguinte:“A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar será prestada de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, entre outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o caso.
— Parágrafo 2o — O juiz assegurará à mulher em situação de violência doméstica e familiar, para preservar sua integridade física e psicológica:
— II — “manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local de trabalho, por até seis meses”.
Desse dispositivo vislumbra-se a instituição, em favor da mulher em situação de violência doméstica ou familiar, de mais um principiante caso legalmente tipificado de interrupção do contrato de trabalho e de estabilidade provisória no emprego.
A utilização da expressão “manutenção do vínculo trabalhista” é completa e certeira. A indicar que além da sustação temporária da prestação de trabalho e disponibilidade perante o empregador, será garantido à trabalhadora, vítima da violência, a preservação da plena vigência e eficácia de todas as cláusulas proveitosas do contrato de trabalho, até quando se fizer necessário seu afastamento.
A hipótese estampada no artigo 9o, parágrafo 2o, no Inciso II, da Lei Maria da Penha, vem a se unir aos casos clássicos de suspensão e interrupção do pacto laboral e de garantias de emprego, previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), na Constituição Federal de 1988 e demais leis extravagantes.
A Lei Maria da Penha, norma ordinária federal, é espécie legislativa boa para o caso, adequada mesmo. Competindo privativamente à União legislar sobre direito processual e do trabalho (artigo 22, Inciso I, da CF/88) e, concorrentemente com os estados, sobre previdência social, proteção e defesa da saúde (artigo 24, Inciso XII), estabelecendo o ente Federal maior normas básicas gerais. O artigo 196 da Lex Maxima, igualmente, preconiza competir ao Poder Público, nos termos da Lei Ordinária, organizar a Seguridade Social, destinada a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
Por sua vez, o artigo 7o, no capítulo que trata dos Direitos Sociais, estabelece que são bem-vindos todos os direitos de trabalhadores urbanos e rurais, produzidos pelo legislador, que visem frontalmente “à melhoria de sua condição social”, quando emprega a locução “além de outros [direitos]”.
É valioso ressaltar que não se pode se conceber como excêntrica ou desajeitada, a fixação desse instituto assecuratório da manutenção do vínculo trabalhista, no corpo da Lei Maria da Penha, em razão de sua suposta vocação penal e processual penal. Ora, a Lei 11.340/2006; assim como o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, que possuem disposições cíveis, penais e administrativas, sem nenhuma falha de inconstitucionalidade ou ilegalidade.
De outro lado, a atribuição do juízo processante pela Lei 11.340/2006 é ampla, porque os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, como já sedimentado na mais vanguardista doutrina, possuem competência cível (extrapenal) e criminal, como prevê o artigo 14 da Lei 11.340/2006. Aonde ainda não instaladas, as Varas Criminais acumularão essas amplas competências para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. A manutenção do vínculo trabalhista em favor da mulher vítima de violência doméstica e familiar, como sinalizado pela própria lei, só poderá ser decretada pelo juiz. Implicando dizer, assim, que se fará imperioso para deflagração da benesse assecuratória da propositura de procedimento judicial prévio ou instauração de expediente policial apartado (artigo 12, Inciso III, da Lei 11.340/2006), para provocação do Poder Judiciário.
Salientando que o benefício legal tanto poderá ser veiculado em uma ação penal, para apuração de crime ou contravenção, como em uma ação cível em geral, como de separação litigiosa, divórcio direito, alimentos, indenização etc. O texto da lei, abrangente, é claro ao se referir a “mulher em situação de violência doméstica e familiar”, e não “mulher vítima de infração penal”, o que descarta a possibilidade de aplicação do instituto da manutenção do vínculo trabalhista apenas para os casos de responsabilidade penal.
A formalização do pedido de manutenção do vínculo trabalhista tanto poderá ser requerida na fase investigatória policial, mediante o expediente apartado dirigido ao juiz, com o pedido da ofendida para sua concessão, ou mesmo após o oferecimento da denúncia, através de pedido verbal da ofendida que será tomado a termo, ou através de requerimento do Ministério Público ou da Defensoria Pública.
Tratando-se de ação cível, o pedido de conservação do vínculo laboral tanto poderá ser requerido pela ação cautelar incidental ou preparatória, conforme o caso. Sendo defesa sua formulação por meio de pedido de tutela antecipada de que cuida o artigo 273 do Código de Processo Civil, pois trata-se de procedimento de natureza cautelar, que visa preservar a integridade física e psicológica da mulher.
O que por certo não impedirá, em caso de equívoco do defensor público ou advogado da parte, do manejo pelo juiz da causa da regra da fungibilidade entre a tutela cautelar e a antecipada, deferindo a providência cautelar em caráter incidental ao processo ajuizado se puderem ou houverem sido formulados outros pedidos de natureza principal, ou deferindo a providência cautelar como medida preparatória. Sendo que, aí, neste último caso, se determinado à parte que respeite o trintídio legal para ajuizamento da demanda principal, sob pena de cessação de eficácia da medida cautelar.
A formulação, na ação cível, de pedido principal veiculando a manutenção do vínculo trabalhista desnatura o caráter acessório e instrumental desse instituto protetivo de urgência, ocasionando indesejada usurpação da competência da Justiça do Trabalho, responsável esta pelo processo e julgamento de ações oriundas da relação de trabalho. A cessação temporária do contrato de trabalho e a garantia de emprego devem ser tomadas como uma questão secundária, que incide sobre o processo principal, merecendo solução antes da decisão da causa ser proferida.
Outro requisito para o êxito da manutenção cautelar do vínculo trabalhista, por evidente, será a demonstração pela mulher de que encontra-se em situação de violência doméstica e familiar. Não nos moldes exigidos pelo artigo 333 do CPC ou artigo 156 do Código de Processo Penal, para um juízo meritório definitivo e exauriente da lide, mas, sim, dentro dos limites estabelecidos para concessão das medidas cautelares em geral. Bastando à mulher a demonstração da probabilidade da existência do direito afirmado e o fundado receio de que sua integridade física e psicológica sofra dano irreparável ou de difícil reparação, por ato do agressor, e em razão da natural demora da solução do processo.
A manutenção do vínculo trabalhista à mulher em situação de violência doméstica e familiar fica condicionada à necessidade da preservação de sua integridade física e psicológica. Assim, se o suposto agressor, no transcorrer da lide, não estiver investindo contra a vítima, ou estiver cumprindo à risca e com fidelidade todas as medidas protetivas de urgência deferidas, ou mesmo se estiver preso em flagrante ou preventivamente, é indevida a concessão da cautelar de manutenção da relação de emprego, em razão da ausência de iminência de risco à integridade física ou psicológica da ofendida.
Outrossim, para decretação cautelar da manutenção do vínculo trabalhista deve ser verificado pelo juiz se o afastamento do local de trabalho pela mulher se faz necessário, recomendável. Pelo que, mesmo se o suposto agressor estiver no encalço da mulher, descumprindo parcialmente algumas das medidas protetivas de urgência, ou mesmo caso tenha se evadido da prisão para local incerto, será necessário, mesmo assim, que fique evidenciado que o acusado está rondando as imediações do local de trabalho da vítima, ou seja, que o ambiente de trabalho da ofendida possa se constituir em verdadeiro alçapão ou tabuleiro para a reiteração criminosa, em abalo da ordem pública.
Acaso restar incólume o desenvolvimento da atividade laborativa pela mulher, em seu local de trabalho, deixando o suposto agressor a vítima em paz neste recinto, certo abalo psicológico ou moral desta poderá ser elemento para o êxito da causa principal, mas não se constituirá em motivo para decretação da cautelar de manutenção do vínculo trabalhista, por falta de interesse jurídico na medida.
O mesmo pode acontecer com aquelas vítimas que exerçam atividade laborativa externa incompatível com a fixação de horário de trabalho ou que o ambiente de trabalho se revele fortaleza inexpugnável pelo agressor, como acontece no caso das aeronautas que trabalham a bordo de aeronaves, contanto que seu algoz também não seja tripulante da mesma.
O inciso II, do parágrafo 2o, do artigo 9o, da Lei Maria da Penha parece ter sido inspirado sob forte e otimista influência do princípio da razoável duração do processo, insculpido no novel Inciso LXXVIII, do artigo 5o, da CF, ao prescrever limite máximo de seis meses para subsistência da cautelar da manutenção do vínculo trabalhista, sem expressa previsão da possibilidade de prorrogação da medida.
Lapso reanimado, também, pelas recentes alterações introduzidas no Código de Processo Penal pela Lei 11.719/2008, que prevê prazo de 60 (sessenta) e 30 (trinta) dias para realização da audiência de instrução e julgamento para as causas referentes aos processos comuns e sumários, respectivamente. Acontece que acaso não encerrado o feito principal em seis meses, e ainda persistirem os motivos ensejadores da manutenção cautelar do vínculo trabalhista, com a séria e fundada possibilidade de comprometimento da integridade física e psicológica da mulher em situação de violência doméstica e familiar, parece óbvio que a medida acauteladora deva ser prorrogada, quantas vezes parecer necessário e suficiente para manutenção da ordem pública, evitando-se, assim, a possibilidade de reiteração criminosa por parte do agente.
Não se pode esquecer que o deferimento das tradicionais medidas protetivas de urgência elencadas nos artigos 22 e 23 da Lei 11.340/2006, e o seu pontual e efetivo cumprimento, notadamente as de afastamento do lar e de proibição de aproximação da ofendida e de seus familiares, ou mesmo a decretação da segregação provisória do indiciado ou acusado, muitas das vezes podem se revelar medidas inócuas, de nenhum efeito, a dispensar a medida extrema da manutenção do vínculo trabalhista.
É que em certos casos é sabido que a própria família do agressor ou pessoas próximas deste tomam partido da desordem instalada pela prática da violência doméstica e familiar, assumindo leal posição contrária aos interesses da ofendida, auxiliando o agressor em seu juramento de por cobro à vida da ofendida. Tal reforço delinqüente é costumeiramente observado naquelas causas envolvendo maridos ou filhos agressores que comercializam drogas ilícitas ou delas sejam dependentes.
Quem sabe na suposição de que a eliminação da ofendida também poderá representar queima de arquivo sobre os negócios da boca-de-fumo, mantendo, assim, o sigilo da societa sceleris. O que acaba por revelar que a manutenção do vínculo trabalhista da mulher ofendida, quando necessário o seu afastamento do local de trabalho, com seu encaminhamento para local seguro mantido pelo Poder Público ou para casa de parentes distantes do local dos fatos, traduz-se em medida conveniente nesses casos em que integridade física e psicológica da ofendida encontra-se em ponderável risco, em razão do concurso ou contribuição criminosa de terceiros para abalo da ordem pública.
Noutro giro, a reconhecida omissão legislativa do Estado em não incluir no rol de benefícios sociais, compreendidos no Regime Geral da Previdência Social, no artigo 18, da Lei 8.213/91, das prestações relativas à manutenção do vínculo trabalhista à mulher em situação de violência doméstica e familiar, não impedirá o deferimento da medida.
O artigo 6o da Lei 11.340/2006 é claro ao dispor que “a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos”. Sendo assim, é regra insuperável de hermenêutica constitucional a lição de que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Diante de eventual lacuna das Leis 8.212/91, 8.213/91 e do Decreto 3.048/99, principais Diplomas sobre Seguridade Social, imperioso se fará ao Juiz a aplicação das técnicas jurídicas de integração da norma jurídica, seja por meio da utilização da analogia, seja através da interpretação extensiva ou ampliativa.
Para tanto, no caso do uso da analogia, deverá o magistrado aplicar aos casos de manutenção do vínculo trabalhista à mulher em situação de violência doméstica e familiar das regras pertinentes ao auxílio-doença. Em linhas gerais, durante os primeiros 15 dias consecutivos ao do afastamento da atividade, incumbirá à empresa ou pessoa física empregadora pagar à segurada empregada o seu salário integral, e, após, o encargo ficará por conta da Previdência Social (artigo 60, Parágrafo 3o, da Lei 8.213/91).
No caso de aplicação da interpretação extensiva ou ampliativa, poderá o julgador considerar que a violência doméstica e familiar traduz-se, por via oblíqua, em ofensa à integridade física ou psicológica da mulher, equiparando-a a doença da segurada.

O próprio artigo 7o, da Lei 11.340/2006, sem pretensão de esgotar as formas de atrocidade contra a mulher, reza que são formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
— I — a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;
— II — a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
— III — a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
— IV — a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; e,
— V — a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria”.

Por conseguinte, mesmo de uma leitura apressada e desatenta deste dispositivo legal, à exceção dos casos de violência estritamente patrimonial, não fica difícil estabelecer um paralelo ou ponto de interseção entre a violência doméstica e familiar e as moléstias que rendem ensejo à concessão do auxílio-doença, a ampliar seu espectro de incidência.
Nem se alegue, aqui, qualquer violação ao Princípio da Preexistência do Custeio em Relação ao Benefício, que pontifica que “nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total”, artigo 195, parágrafo 5o, a CF/88. Este dispositivo tem de ser analisado em cotejo com o artigo 203 da CF/88 que determina “a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social”.
Para tornar saliente as incongruências do Estado Democrático de Direito brasileiro, veja-se que acaso condenado o acusado pela prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, com trânsito em julgado, uma vez lançado ao cárcere, imediatamente o mesmo fará jus ao gozo do auxílio-reclusão, que será devido aos seus dependentes, artigo 80 da Lei 8.213/91. O requerimento do auxílio-reclusão deverá ser instruído com certidão do efetivo recolhimento à prisão, sendo obrigatória, para a manutenção do benefício, a apresentação de declaração de permanência na condição de presidiário.
Não se combate, advirta-se, a instituição desse piedoso benefício à família do preso, ao contrário, é medida salutar para a preservação de sua amada família. O que se reprova, com veemência, é a mora do legislador da União em positivar; e do Executivo Federal de regulamentar o instituto da manutenção cautelar do vínculo trabalhista à mulher em situação de violência doméstica e familiar, para preservar sua integridade física e psicológica.
O INSS é uma autarquia federal, e como todos os outros órgãos da administração pública indireta, se submete ao princípio da legalidade estrita ou da reserva legal: enquanto os indivíduos no campo privado podem fazer tudo o que a lei não veda, o agente público só pode atuar onde a lei autoriza.
Noutras palavras, não há como eficazmente dinamizar ou facilitar a concessão do benefício de manutenção cautelar do vínculo trabalhista à mulher em situação de violência doméstica e familiar, por ausência de normatização particularizada. Entretanto, o dia-a-dia forense revelará a verdadeira via crucis a que se submeterá a mulher ofendida para efetiva implementação e percebimento do benefício em cada caso concreto. Exigir-se-á, é sabido, do Poder Judiciário, com muita paciência, envio de diversos ofícios à autarquia previdenciária para consecução da prestação à mulher violentada, ameaçada em sua integridade física e psicológica. Mas o Judiciário não se renderá a mais esse cochilo legislativo.

Carlos Eduardo Rios do Amaral


Revista Jus Vigilantibus

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