terça-feira, 3 de novembro de 2009

Crack, o caminho de volta


Histórias de ex-usuários apontam para a saída da dependência da droga que mudou o tratamento do vício

Rio - No mundo das drogas, o crack é o caminho mais curto entre a primeira ‘onda’ e a morte. De todos os entorpecentes ilícitos traficados no Brasil hoje, nenhum tem o poder de viciar tão rápido nem de causar os mesmos danos ao corpo e à mente. Em uma tragada, já vem a ‘fissura’ e a vontade de fumar mais. Em 15 dias de uso regular, a dependência. Nesse ritmo, em até um ano, o usuário pode estar morto.
Sem tratamento, a destruição total de quem prova as pedras amareladas, vendidas por até menos de R$ 1 — só no Rio há pelo menos 118 pontos —, é questão de tempo. Pouco tempo. O caminho de volta, porém, apesar de longo e doloroso, existe. “O crack forçou mudanças no modelo de tratamento da dependência. Com as outras drogas, é possível medicar e contar com a força de vontade do usuário. Com o crack, não há recuperação se o usuário, com alto nível de dependência, não for isolado, e até preso, para não fugir na hora da crise, jogando por terra todo o esforço até ali”, afirma o psiquiatra Jairo Werner, com 30 anos de experiência no assunto.
Uma das provas, ainda que raras, de que é possível se livrar do crack é a história de vida de Carlos Henrique Rosa, 32 anos. Da primeira geração de usuários da droga no Rio, Carlão esteve perto da morte e conseguiu escapar. Mas passou um bom tempo vivendo como mendigo em São Paulo, para ficar próximo das pedras.

SEIS MESES SEM BANHO
Quem vê Carlão saudável e alegre, tocando violão e aconselhando ex-usuários de drogas, não imagina como o crack destruiu a sua vida. “Passei seis meses sem tomar banho nem escovar os dentes, esmolando pela cracolândia. O crack fez de mim um zumbi”, lembra.
Antes que a droga chegasse ao Rio, ele já conhecia bem o poder de destruição das pedras. Foi morar com parentes em São Paulo, uma tentativa desesperada da família de fazê-lo ficar longe da maconha, que conheceu ainda adolescente. “Minha mãe não tinha noção do inferno que se tornaria minha vida. Eu era um lixo ambulante, sem lucidez”, lembra.
De volta ao Rio, depois de ter sido encontrado por acaso pela mãe, Carlão passou pela fase mais difícil: a abstinência. “Era uma dor de cabeça insuportável, acompanhada de febre. Eu batia com a cabeça no chão para tentar aliviar ou desmaiar logo e não sentir mais dor”. Foram 45 dias internado e seis meses como semi-interno. Ainda sim, a recaída foi inevitável. “Drogado, me sentia um profissional melhor. Bastavam algumas pedras e eu trabalhava 48 horas sem pregar o olho. Entrava em desespero só de pensar que ficaria sem crack, por isso a dificuldade de me manter limpo”, lembra.
Mesmo ‘limpo’ há oito anos, Carlão sabe que nunca mais será o mesmo. “Tudo mudou. Não posso mais chegar perto de dinheiro. Meu pagamento vai direto para as mãos da minha mulher. Meu convívio social também não é igual. Se eu beber um gole de cerveja, vai despertar em mim aquele monstro adormecido. Por isso, evito alguns ambientes. Mas não deixei de sair e me divertir”, diz.

Terapia convencional não funciona
Uma análise do comportamento de usuários de crack, com base em estudos sobre o impacto da droga no corpo, traz uma dura constatação. “Terapias convencionais, remédios, centros de tratamento — nada disso mais está conseguindo curar a doença do vício”, alerta Jairo Werner.
Para o especialista, o tratamento mais adequado é bem mais caro e demorado. “É preciso um tratamento interligado, com internação, assistência psicológica, remédios mais potentes e, principalmente, um ambiente protegido, porque ele, mais do que um depende de cocaína, vai tentar fugir”.

Tratamento particular custa R$ 300 por dia
Muito distantes da realidade e do orçamento de grande parte das famílias de dependentes de crack, os tratamentos de recuperação, que só acabam com a morte do usuário, são na prática privilégio de uma parcela muito pequena da população. Segundo Jairo Werner, a internação em clínica particular custa média de R$ 300 por dia. “Considerando que a necessidade mínima de tratamento é de 4 meses, a primeira fase custará cerca de R$ 36 mil. Sem contar o que gastará no resto da vida”.
Quem não pode pagar por tanto, porém, poderá cobrar promessas importantes das secretarias Municipal e Estadual de Saúde. A Prefeitura do Rio prometeu abrir mais três Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps-ad) em Santa Cruz, Penha e Centro ainda este ano. Já o governo do estado vai normatizar o atendimento clínico e psicológico aos menores recolhidos da rua em todas as unidades de saúde.

“Passei meu aniversário de 15 anos fumando e cheirando”

O mais novo dos usuários de crack internados no Projeto Livres, em Maricá, tem 15 anos, é mais um jovem de classe média envolvido com drogas. Filho de advogados, V. começou a fumar maconha aos 13: “Não queria mais ser apontado como o gordinho da turma, mas, sim, aceito no grupo dos meninos mais velhos do bairro que já usavam a droga”. Meses depois, quilos a menos, experimentou cocaína, que buscava no morro e revendia a amigos.
Para o crack, foi um pulo. “Só a cocaína já não dava mais onda”, lembra. “A primeira pedra era tão grande que, quando acabei de fumar, caí apagado. Ficou tudo escuro e não me lembro de nada. Meus amigos contaram que fiz coisas muito loucas, que fiquei me batendo. Quando recuperei os sentidos, não me lembrava de nada. O crack faz as pessoas se sentirem mais fortes e violentas”, contou.
Pais separados, o dinheiro mais curto. “Então, comecei a furtar pedestres no Centro de Niterói. Passei meu aniversário de 15 anos fumando e cheirando com a galera para comemorar, em um morro violento do Rio, onde meus pais nunca sonharam que eu poderia estar. Gastei R$ 400 da minha mesada com drogas. Tudo em um único dia”, contou.
Há um mês, V. voltou para o Proliv, depois de uma recaída. “Achei que poderia reencontrar os mesmos amigos de antes e ficar limpo. Acabei me drogando de novo. Mas agora quero sair dessa de vez e dar orgulho aos meus pais, o que eles já não sentem de mim há muito tempo”, afirmou. Depois de dada como encerrada a entrevista, decidiu acrescentar: “Vai ser difícil, mas posso sair dessa”.

ONDE ACHAR
Apesar da deficiência admitida pela rede pública, prefeitura e estado garantem que todas as unidades de saúde, mesmo as que não são voltadas para o tratamento de dependentes químicos, receberão quem pedir ajuda e encaminharão ao endereço correto. O mesmo vale para Niterói. Para encurtar tempo e caminho, o serviço está disponível nos locais indicados abaixo:

UNIDADES NO RIO
Caps-AD Mané Garrincha. End.: Rua Prof.º Manoel de Abreu 196, Maracanã. Tel.: 2567-2419.
Caps-AD Raul Seixas. End.: Rua Dois de Fevereiro 785, Eng. de Dentro. Tel.: 3111-7512.
Centro de Tratamento e Reabilitação de Adictos (Caps-AD Centra-Rio). Unidade do estado. End.: Rua Dona Mariana 151, Botafogo. Tel.: 2334-8108/8107.

NA CIDADE DE NITERÓI
Caps-AD Alameda. End.: Alameda São Boaventura 129. Tel. 2718-5803.
Hosp. Psiquiátrico de Jurujuba (24 horas). Av. Quintino Bocaiúva s/n°. Tel. : 2711-3166/ 2714-885.

Amanda Pinheiro


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