Pesquisas mostram que pais irritados recorrem demais à pedagogia do grito. Ela é um avanço em relação às palmadas, mas também deixa marcas
"Cauê, vai tomar banho.” A primeira ordem da enfermeira Camila Segala, de 31 anos, ao filho, de 7, é feita em tom normal. Mas Cauê não vai. Ela repete a frase duas vezes. O menino não tira os olhos da televisão. Então o pedido se transforma em grito: “Vai tomar banho logo!!! Todo dia é isso!!! Você ainda tem de fazer a lição de casa!!!”. Tem sido assim a rotina de Camila e do marido, o empresário Wellington Segala, de 33 anos, que moram em Santo André, São Paulo. Além de Cauê, eles têm a pequena Giovana, de 4. Nunca deram uma palmada nas crianças. Mas, diante da desobediência ou da bagunça, resolvem no grito. Às vezes, Giovana tampa os ouvidos e chora: “Mamãe, não precisa gritar”. Mas o grito, confessa Camila, é um hábito difícil de largar. A explicação quase sempre é o cansaço: depois de um dia inteiro de trabalho, que pai ou mãe não explodem com o filho desobediente?
Na atual geração de pais, em que as palmadas foram banidas do repertório educativo, elevar a voz se transformou no recurso mais usado para impor disciplina. Em toda parte. “Trabalho com milhares de pais e posso dizer, com certeza, que o grito é a nova surra”, afirma a terapeuta de família americana Amy McCready, organizadora do Positive Parenting Solutions, que dá cursos e aconselhamento para pais. “A maioria se sente sem ferramentas para disciplinar seus filhos e acaba gritando. Depois se sente culpada e passa por um período de autocontrole, mas acaba apelando para os berros novamente, criando um padrão familiar.” Na semana passada, ela disse o mesmo em uma reportagem do jornal americano The New York Times, que mostrou vários psicólogos criticando a pedagogia dos altos decibéis. “Nós elogiamos os pequenos por aprenderem a assoar o nariz, somos amigos do adolescente e somos capazes de passar um bom tempo ajudando nosso filho a entender seus sentimentos. Mas, paradoxalmente, somos uma geração que berra”, diz o artigo.
As educdoras americanas Devra Renner e Aviva Pflock, autoras do livro Mommy guilt (Culpa de mãe), fizeram uma pesquisa com 1.300 pais sobre o que os deixava mais culpados no dia a dia doméstico. Dois terços apontaram “gritar com as crianças” – mais que faltar ao trabalho ou esquecer uma reunião escolar. “Levantar a voz é a reação mais fácil e rápida, aquela que todos os pais cometem. E eu me incluo entre eles”, diz Aviva, mãe de três filhos com idade entre 8 e 17 anos. O debate sobre a pedagogia do grito rapidamente tomou conta da internet. “Meu nome é Francesca Castagnoli, e eu berro com meus filhos”, escreveu, como quem participa de um grupo de reabilitação, a autora do blog Motherblogger, dos mais procurados pelas cibermães. “Sinto como se revelasse o lado ruim de minha família. Gritar é como deixar seu filho trancado no carro enquanto faz compras no supermercado.”
Será tão grave? Os críticos do grito paterno afirmam que ele assusta a criança sem ter efeito pedagógico. “Quando você grita com seu filho, ele não assimila suas palavras. Ouve o volume de sua voz e sente sua raiva”, diz Amy McCready. Segundo ela, a criança pode até obedecer na hora, mas não há efeitos de médio e longo prazos. “Não há aprendizado. Repare como no dia seguinte você provavelmente berrará as mesmas coisas”, diz. Logo, o grito paterno é mais um instrumento de correção ou apenas uma explosão emocional? “Nos dias de hoje, ele revela perda de controle”, diz Anne Lise Scapatticci, psicanalista infantil e doutora em saúde mental pela Escola Paulista de Medicina. Para ela, o diálogo é a melhor forma de educar, mas a criança precisa lidar com a ideia de que pais também ficam nervosos, irritados ou cansados. “Mesmo pequena, ela é capaz de entender as emoções dos outros. Especialmente quando depois do grito existe uma boa conversa ou um pedido de desculpas.”
É assim que procura agir a publicitária carioca Tatiana Saback, de 40 anos, mãe de Pedro, de 12, André, de 10, e Glória, de 9. Ela acredita que levantar a voz em determinadas situações tem “efeito moral”. E, mesmo se não tivesse, há momentos em que não dá para segurar. “Mas nunca deixo de bater um bom papo depois sobre os motivos de eu ter perdido a calma”, afirma. Brigas entre irmãos e desobediência na hora de tomar banho ou estudar são as maiores causas dos gritos – mas estes, ela enfatiza, nunca acontecem na frente de amiguinhos ou na rua. “Serve para eles tomar um susto e acordar. A educação vem depois, na conversa”, afirma Tatiana. Criança nos anos 70, ela se recorda de ter levado boas palmadas – sem traumas. “Naquela época era comum, ninguém se sentia mau pai por causa disso”, diz. “Eu não bato em meus filhos, mas grito quando preciso. Espero estar fazendo o melhor.”
Provavelmente está. O conceito de bom pai ou de boa mãe é construído pela cultura de cada lugar e cada período. E é flexível – desde que não coloque em risco a integridade física e mental das crianças. A terapeuta familiar Magdalena Ramos, mãe de duas filhas e avó de quatro netos, professora da Universidade Católica de São Paulo por 33 anos, lembra que as crianças são criaturas resistentes. Não é um par de gritos teatrais de uma mãe nervosa que vai traumatizá-las. O problema, diz a psicanalista argentina, é a repetição e a padronização do comportamento agressivo. “O grito tem de ser a exceção”, afirma. “Se ele se tornar a norma na relação entre pai e filho, se os pais estão sempre alterados, talvez seja hora de procurar ajuda profissional.” Magdalena diz que os pais modernos são estressados (porque trabalham demais, porque têm pouco tempo livre) e, consequentemente, na relação com as crianças alternam impaciência, gritos e culpa. Muita culpa. Repreensões são ditadas menos pelo comportamento da criança que pelo estado de espírito dos adultos. Se os pais estão tranquilos (ou sentindo-se culpados), pode. Se eles estão nervosos, não pode. “Isso confunde as crianças”, diz a tarapeuta. “Estimula um comportamento de barganhar. E gritar.”
Martha Mendonça, com reportagem de Fernanda Colavitti e Ivan Martins
Época
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"Cauê, vai tomar banho.” A primeira ordem da enfermeira Camila Segala, de 31 anos, ao filho, de 7, é feita em tom normal. Mas Cauê não vai. Ela repete a frase duas vezes. O menino não tira os olhos da televisão. Então o pedido se transforma em grito: “Vai tomar banho logo!!! Todo dia é isso!!! Você ainda tem de fazer a lição de casa!!!”. Tem sido assim a rotina de Camila e do marido, o empresário Wellington Segala, de 33 anos, que moram em Santo André, São Paulo. Além de Cauê, eles têm a pequena Giovana, de 4. Nunca deram uma palmada nas crianças. Mas, diante da desobediência ou da bagunça, resolvem no grito. Às vezes, Giovana tampa os ouvidos e chora: “Mamãe, não precisa gritar”. Mas o grito, confessa Camila, é um hábito difícil de largar. A explicação quase sempre é o cansaço: depois de um dia inteiro de trabalho, que pai ou mãe não explodem com o filho desobediente?
Na atual geração de pais, em que as palmadas foram banidas do repertório educativo, elevar a voz se transformou no recurso mais usado para impor disciplina. Em toda parte. “Trabalho com milhares de pais e posso dizer, com certeza, que o grito é a nova surra”, afirma a terapeuta de família americana Amy McCready, organizadora do Positive Parenting Solutions, que dá cursos e aconselhamento para pais. “A maioria se sente sem ferramentas para disciplinar seus filhos e acaba gritando. Depois se sente culpada e passa por um período de autocontrole, mas acaba apelando para os berros novamente, criando um padrão familiar.” Na semana passada, ela disse o mesmo em uma reportagem do jornal americano The New York Times, que mostrou vários psicólogos criticando a pedagogia dos altos decibéis. “Nós elogiamos os pequenos por aprenderem a assoar o nariz, somos amigos do adolescente e somos capazes de passar um bom tempo ajudando nosso filho a entender seus sentimentos. Mas, paradoxalmente, somos uma geração que berra”, diz o artigo.
As educdoras americanas Devra Renner e Aviva Pflock, autoras do livro Mommy guilt (Culpa de mãe), fizeram uma pesquisa com 1.300 pais sobre o que os deixava mais culpados no dia a dia doméstico. Dois terços apontaram “gritar com as crianças” – mais que faltar ao trabalho ou esquecer uma reunião escolar. “Levantar a voz é a reação mais fácil e rápida, aquela que todos os pais cometem. E eu me incluo entre eles”, diz Aviva, mãe de três filhos com idade entre 8 e 17 anos. O debate sobre a pedagogia do grito rapidamente tomou conta da internet. “Meu nome é Francesca Castagnoli, e eu berro com meus filhos”, escreveu, como quem participa de um grupo de reabilitação, a autora do blog Motherblogger, dos mais procurados pelas cibermães. “Sinto como se revelasse o lado ruim de minha família. Gritar é como deixar seu filho trancado no carro enquanto faz compras no supermercado.”
Será tão grave? Os críticos do grito paterno afirmam que ele assusta a criança sem ter efeito pedagógico. “Quando você grita com seu filho, ele não assimila suas palavras. Ouve o volume de sua voz e sente sua raiva”, diz Amy McCready. Segundo ela, a criança pode até obedecer na hora, mas não há efeitos de médio e longo prazos. “Não há aprendizado. Repare como no dia seguinte você provavelmente berrará as mesmas coisas”, diz. Logo, o grito paterno é mais um instrumento de correção ou apenas uma explosão emocional? “Nos dias de hoje, ele revela perda de controle”, diz Anne Lise Scapatticci, psicanalista infantil e doutora em saúde mental pela Escola Paulista de Medicina. Para ela, o diálogo é a melhor forma de educar, mas a criança precisa lidar com a ideia de que pais também ficam nervosos, irritados ou cansados. “Mesmo pequena, ela é capaz de entender as emoções dos outros. Especialmente quando depois do grito existe uma boa conversa ou um pedido de desculpas.”
É assim que procura agir a publicitária carioca Tatiana Saback, de 40 anos, mãe de Pedro, de 12, André, de 10, e Glória, de 9. Ela acredita que levantar a voz em determinadas situações tem “efeito moral”. E, mesmo se não tivesse, há momentos em que não dá para segurar. “Mas nunca deixo de bater um bom papo depois sobre os motivos de eu ter perdido a calma”, afirma. Brigas entre irmãos e desobediência na hora de tomar banho ou estudar são as maiores causas dos gritos – mas estes, ela enfatiza, nunca acontecem na frente de amiguinhos ou na rua. “Serve para eles tomar um susto e acordar. A educação vem depois, na conversa”, afirma Tatiana. Criança nos anos 70, ela se recorda de ter levado boas palmadas – sem traumas. “Naquela época era comum, ninguém se sentia mau pai por causa disso”, diz. “Eu não bato em meus filhos, mas grito quando preciso. Espero estar fazendo o melhor.”
Provavelmente está. O conceito de bom pai ou de boa mãe é construído pela cultura de cada lugar e cada período. E é flexível – desde que não coloque em risco a integridade física e mental das crianças. A terapeuta familiar Magdalena Ramos, mãe de duas filhas e avó de quatro netos, professora da Universidade Católica de São Paulo por 33 anos, lembra que as crianças são criaturas resistentes. Não é um par de gritos teatrais de uma mãe nervosa que vai traumatizá-las. O problema, diz a psicanalista argentina, é a repetição e a padronização do comportamento agressivo. “O grito tem de ser a exceção”, afirma. “Se ele se tornar a norma na relação entre pai e filho, se os pais estão sempre alterados, talvez seja hora de procurar ajuda profissional.” Magdalena diz que os pais modernos são estressados (porque trabalham demais, porque têm pouco tempo livre) e, consequentemente, na relação com as crianças alternam impaciência, gritos e culpa. Muita culpa. Repreensões são ditadas menos pelo comportamento da criança que pelo estado de espírito dos adultos. Se os pais estão tranquilos (ou sentindo-se culpados), pode. Se eles estão nervosos, não pode. “Isso confunde as crianças”, diz a tarapeuta. “Estimula um comportamento de barganhar. E gritar.”
Martha Mendonça, com reportagem de Fernanda Colavitti e Ivan Martins
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