quarta-feira, 22 de julho de 2009

Cracolândia expõe conivência da sociedade com o uso do crack, diz pesquisadora


A conivência entre a sociedade, a polícia, os usuários e os traficantes permite que o comércio e o uso do crack seja praticamente liberado em algumas ruas da região central de São Paulo. A avaliação é da psicofarmacóloga e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Solange Nappo, que realiza pesquisas sobre o crack desde 1992.
Para a professora, a existência da Cracolândia é uma forma conveniente para a sociedade de lidar com o uso da droga na cidade. “Parece uma coisa já absorvida por todas as instâncias, polícia, sociedade, que eles [os viciados] fiquem ali [na Cracolândia] e não perturbem a ordem em outros locais. Mal visto para quem mora do lado, mas bem visto para todo o resto da sociedade, que não tem que lidar com aquele pessoal.”
Morar ao lado da Cracolândia é “viver uma temporada no inferno”, diz o vice-presidente da Associação dos Moradores e Comerciantes do Bairro de Campos Elíseos (AMCCE), Nelson Barbosa. “É triste demais ver aquelas pessoas se arrastando pelas ruas, sem banho, mal cheirosas, sem alimentação, desdentadas e sofrendo todo tipo de privação. E, além disso, há a situação da insegurança.”
A degradação do centro da cidade é, na opinião de Barbosa, o principal motivo para aglomeração de grupos de até 200 usuários de crack na área. “As empresas foram saindo [do centro], as pessoas de melhores posses foram saindo e os prédios foram se tornado obsoletos.”
O pastor Jair Nery dos Santos, que coordena uma missão evangélica em uma rua tomada pelos usuários de crack, acredita que o caráter essencialmente comercial da região facilita o trânsito dessas pessoas. Ele destaca o fato de o número de viciados ser muito maior após o fechamento das lojas no final da tarde.
O grande volume pessoas circulando nas proximidades seria algo que, para o pastor Jair, aumenta a possibilidade de se conseguir dinheiro para sustentar o vício. “Aqui passa muita gente que não é daqui, que acaba dando uma ajuda, achando que ele está com fome.”
A mulher de Jair, a pastora Nildes Nery dos Santos, que divide com ele a coordenação da missão e do trabalho com os moradores de rua, oferecendo banho e alimentos, acredita que o histórico da região atrai as pessoas envolvidas com drogas. “Todos vêm por causa dessa história de que a entrada do crack em São Paulo ocorreu na região próxima a Estação da Luz.”
Originário de Salvador, o casal já havia desenvolvido um trabalho com pessoas em situação semelhante. Apesar disso, Nildes se surpreendeu com a situação da Cracolândia quando chegou, há três anos. “Confesso que nunca vi nenhum lugar como aqui.”
Viver em função do crack nas ruas do centro de São Paulo foi uma forma de fugir dos problemas para Valderedo Araújo, 38 anos. “Quando você está ali, não tem problema nenhum. Você está usando droga, está curtindo. Ninguém fica enchendo o saco, falando o que você tem e não tem que fazer.”
Valderedo viveu dois anos nos domínios do crack, período ao qual ele atribui a perda dos dentes da frente, dos cabelos e o envelhecimento precoce.
As pessoas que vivem na Cracolândia vem de todo o Brasil, destacou o psicólogo da organização não governamental (ONG) É de Lei, Thiago Calil, que trabalha com redução de danos com os usuários da região. “A grande maioria está sozinha, sem nenhum contato com a família.”

Usuários de crack criam estratégias para evitar exclusão social
Alguns usuários de crack desenvolveram estratégias para lidar com o vício e, ao mesmo tempo, não ficar excluídos em guetos como a Cracolândia, em São Paulo, apontam as pesquisas da psicofarmacóloga da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Solange Nappo, que estuda a droga desde 1992.
A pesquisadora acredita que as associações do crack com outras drogas lícitas e ilícitas feitas por essas pessoas amenizam os principais efeitos colaterais: a psicose e a fissura ( desejo compulsivo de consumir a substância).
“Quando o crack surgiu, eles não misturavam com nada para não perder o efeito. Hoje em dia, eles abrem mão de parte desse efeito prazeroso para não sentir o outro efeito que é tão lastimável”, disse Solange.
Apesar dos efeitos ainda incertos sobre a saúde com a mistura de outros elementos ao crack, essas pessoas conseguem trabalhar e conviver com a família, afirma a pesquisadora. “Alguns têm obtido sucesso, não se sabe a que preço. Mas têm obtido sucesso porque estão vivos e inseridos na sociedade.”
De acordo com a pesquisadora, essas estratégias podem ser estudadas para que seja desenvolvido um modelo de redução de danos. Ela explicou que o combate as drogas ocorre em três etapas: prevenção, o tratamento e redução de danos para os dependentes em estágio avançado.
“Ele [o viciado em estágio avançado] vai usar [a droga] de qualquer forma. Então, vamos tentar reduzir os danos desse uso para que ele não seja banido da sociedade, para que não se exponha a riscos e não morra”, assinalou Solange.
A abordagem da redução de danos pode, segundo a pesquisadora, incentivar o usuário a abandonar a droga aos poucos. Na Cracolândia, a Organização Não Governamental (ONG) É de Lei realiza um trabalho para evitar a transmissão de doenças como HIV e hepatite por meio do uso de crack.
O cachimbo de madeira foi o primeiro insumo distribuído para usuários de crack com o objetivo de incentivar o não compartilhamento do instrumento. Normalmente, os viciados constroem modelos artesanais de metal, que queimam a boca, causando feridas, e podem transmitir doenças quando compartilhado com outras pessoas.
“O cachimbo serviu como um cartão de visitas”, disse o coordenador do projeto de redução da ONG É de Lei, Thiago Calil, sobre o início da sua atuação na Cracolândia.
Segundo Calil, a redução de danos é uma proposta de “fomentar o autocuidado” entre os usuários de droga, sem tentar necessariamente impedir o uso da substância.
“Se você usa crack, é bom saber que é uma prática que pode deixá-lo vulnerável e que é importante você aprender a se cuidar”, diz o panfleto distribuído nas ruas do centro de São Paulo pela ONG.
Calil destacou que essa linha de atuação é reconhecida internacionalmente e também pelo Ministério da Saúde. A redução de danos, enfatizou, é uma estratégia mal compreendida e pouco aceita por muitos setores da sociedade. Ele lembrou que foi diversas vezes abordado e até revistado por policiais enquanto realizava o trabalho nas ruas do centro.
Por causa das reclamações dos próprios usuários, ONG parou de distribuir os cachimbos de madeira. Eles se queixavam que a madeira dificultava a rapagem da “borra”, resíduo da droga que fica nas paredes do cachimbo. Atualmente são fornecidas piteiras de silicone, panfletos e protetor labial a base de manteiga de cacau.
A ONG É de Lei também costuma ouvir os usuários para definir a sua atução. Os panfletos e o restante do material distribuído pelo ONG, por exemplo, foram elaborados com base em sugestões dos dependentes de crack.


Agência Brasil


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