quarta-feira, 3 de junho de 2009

Como é a vida de quem se agarra à esperança de rever o filho desaparecido

“Eu a sinto viva”
Como é a vida de quem se agarra à esperança de rever o filho desaparecido – e como prevenir novos dramas
Por Martha Mendonça


QUARTO INTOCADO
Na foto acima,Elizabeth dos Santos com as bonecas da filha única, Caroline, que desapareceu há quatro anos.
Em janeiro de 2006, Taís, de 10 anos, saiu para comprar pão e nunca mais apareceu. Sua mãe, Marineide Bernardino dos Santos, de 47, paraibana de Solânia, se mudou há dez anos para o Rio de Janeiro para trabalhar como empregada doméstica. Agora vive com três dos quatro filhos. Num cantinho do armário que Taís dividia com a irmã gêmea, Tatiane, Marineide fez uma espécie de santuário para a filha desaparecida: fotografias se misturam a uma imagem de Nossa Senhora Aparecida e à saia que a menina usara no Natal, um mês antes de sumir. “Olhar as coisas dela me deixa mais segura de que ela vai voltar”, diz Marineide, que costuma comprar roupas novas para a filha. “Ela está uma mocinha, quando chegar vai precisar de tudo isso.”
Desde que Taís sumiu, Marineide não voltou ao trabalho. Tem o aspecto de uma mulher doente. Conta que entrou em depressão, perdeu 20 quilos e teve tuberculose. “Sou forte em espírito”, diz. Os filhos mais velhos, Diogo, de 19 anos, e Elaine, de 18, sustentam a casa.
O que Marineide acha que aconteceu? “Acho que ela foi levada por alguém conhecido, que não a deixava voltar. Talvez com o tempo ela tenha ficado com pena da pessoa. Não sei. Quando ela chegar, nem faço questão de que me conte tudo. O importante vai ser estarmos juntas”, afirma. O delegado, conta Marineide, perguntou a ela se batia em Taís. “Tive de rir. Os próprios irmãos diziam que Taís sempre foi a mais mimada, a única que dormia na minha cama.”
No começo do ano, assistindo a um noticiário na TV, Marineide acredita ter visto Taís no meio de uma manifestação de porteiros, em Copacabana. Procurou a emissora e conseguiu um DVD com as imagens que mostram uma menina, ao fundo, andando de patinete. “É ela, eu tenho certeza”, diz. Com o controle remoto na mão, Marineide avança quadro a quadro as imagens da suposta Taís. “Agora, ela vai aparecer atrás daquele homem. Olha lá. Não é ela?”, diz, com fotos da menina na outra mão. A semelhança é de fato grande, tão grande quanto o desejo de que a garota no vídeo seja sua filha. Marineide diz assistir ao DVD mais de 20 vezes por dia. “Eu não faço nada na vida, só procuro e penso em Taís”, afirma.
No Brasil, 40 mil crianças e adolescentes desaparecem a cada ano. A estimativa é da Secretaria Especial de Direitos Humanos. Quase metade foge de casa por maus-tratos. Depois de algum tempo, a maioria retorna. A menina Caroline dos Santos, desaparecida em 2004 no Rio de Janeiro, está incluída na estatística mais cruel: os 15% que somem sem motivo aparente, não deixam vestígios e jamais voltam ao lar. O sorriso dá lugar às lágrimas quando a mãe, Elizabeth, uma acompanhante de idosos de 48 anos, fala da filha única. No quarto quase intocado, no 2o andar de uma casa espaçosa em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, onde mora sozinha, Elizabeth agarra uma das bonecas de Caroline: “Como comemorar Natal, como encarar o Dia das Crianças?”.
“Sem notícias dos filhos, os pais tendem a criar ritos pessoais para lidar com esse estranho luto”, diz a psicóloga Sandra Rodrigues de Oliveira, da PUC do Rio de Janeiro, que analisou o comportamento de mães cujos filhos desapareceram por causa desconhecida em sua tese de mestrado Onde Está Você agora além de aqui dentro de Mim?” (verso de uma canção da Legião Urbana, “Vento no Litoral”). O pesadelo de Elizabeth já dura mais de 1.500 dias.
Caroline, então com 8 anos, sumiu em 13 de abril de 2003, um domingo de Páscoa, quando brincava na casa de uma tia, no bairro de Santíssimo, na zona oeste do Rio. Nunca houve qualquer pista do que aconteceu. A menina pedira à tia para deixá-la ir buscar na casa ao lado a bicicleta que havia emprestado a uma amiga. Vestia uma blusa rosa com glitter e bermuda azul. A praça próxima estava cheia. A TV de um boteco ao lado transmitia um jogo entre Vasco e Botafogo. Caroline não voltou para casa. Uma criança disse ter visto Caroline sendo abordada por um homem na padaria da vizinhança.

OS DESAPARECIDOS
40 mil crianças e adolescentes desaparecem por ano no Brasil. 20% dos casos ocorrem no Estado do Rio de Janeiro.
São Paulo vem em seguida, com 17,5%. 46% fogem por conflitos familiares. 53% são meninos. 15% não voltam para casa.
Elizabeth evita falar em morte. Como a maioria das mães nessa situação, diz “sentir” que a filha está viva. Por isso, fala sempre no presente. Quando a repórter pergunta quantos anos a filha teria hoje, ela responde. “Minha filha tem quase 13”, corrigindo o tempo do verbo. Por mais de dois meses, a vida de Elizabeth e Paulo César, pai de Caroline, foi procurar a menina e distribuir fotografias em sinais de trânsito. “Abandonei o emprego, larguei tudo”, afirma Elizabeth. Pior do que a falta de notícias eram as informações falsas. Vozes anônimas no telefone garantiam estar com “a moreninha gostosa” e desfiavam toda variedade de perversões. “Descobri que a maldade existe”, diz Elizabeth. Há um ano, ela voltou ao trabalho, mas sua rotina ainda é procurar. Quando não está no emprego, está na internet.
A rede é o canal de divulgação e desabafo para os pais de crianças desaparecidas. Há dezenas de sites e mais de mil comunidades no Orkut. A maior delas reúne quase 16 mil membros, gente que troca informações e fotografias, indica entidades ou sugere rezas. O Brasil não tem um cadastro único de crianças desaparecidas que facilite a busca. Desaparecer não é crime, não gera inquérito policial ou processo penal. Até 2006, a polícia ainda esperava 48 horas, a partir do momento em que a família registrava o desaparecimento, para começar as buscas. Pela Lei no 11.259, que existe há dois anos, as delegacias já são obrigadas a informar imediatamente a ocorrência às polícias Rodoviária e Federal e enviar comunicados a portos, aeroportos e terminais de ônibus.
A lista de desaparecidos, porém, é regional e incompleta. “Temos um cadastro único de veículos roubados, mas não de crianças desaparecidas. Um carro vale mais?”, diz Ivanise Espiridião da Silva, presidente da Associação Mães da Sé, que reúne mulheres cujos filhos desapareceram. Desde a véspera de Natal de 1995, ela não tem qualquer informação  sobre a filha Fabiana, que foi vista pela última vez no portão de casa, no bairro de Pirituba, zona norte de São Paulo.
Em 2002, a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) criou na internet uma Rede Nacional para Identificação de Crianças e Adolescentes Desaparecidos. O resultado prático ainda é muito pequeno: há pouco mais de mil nomes cadastrados, e a lista mistura adultos e crianças. “Esperamos que essa rede seja o embrião de um cadastro nacional”, diz Ludmilla Palazzo, secretária-adjunta do Programa de Garantias dos Direitos da Criança e Adolescente da SEDH. Mas ainda são raras as delegacias que abastecem a rede de dados, fazendo a lista crescer e se atualizar. Para Luiz Henrique Oliveira, coordenador do programa SOS Crianças Desaparecidas da Fundação para a Infância e Adolescência, é preciso humanizar o atendimento às famílias. “E trabalhar com a prevenção”, diz.
Um programa no Paraná reduziu de 151 para 30 o número de crianças que desaparecem por ano
É o que faz o Serviço de Investigação de Crianças Desaparecidas (Sicride), do Paraná. Além de divulgar informações atualizadas dos desaparecidos na região, o Sicride criou a Cartilha do João Esperto, distribuída em colégios, igrejas, feiras e eventos. O personagem ajuda as crianças a evitar seqüestros. Em 1996, quando o serviço foi criado, havia 151 crianças desaparecidas no Estado. Hoje são 30. “Nosso diferencial é a campanha educativa, primeiro passo para o combate a qualquer crime”, diz Adelino de Favre, superintendente do projeto.
No mês que vem, o Rio sediará o II Encontro da Rede Nacional de Identificação e Localização de Crianças e Adolescentes Desaparecidos. No primeiro encontro, em 2005, em Brasília, surgiram idéias como o compromisso de criar o cadastro único e a medição oficial de desaparecimentos. Nada foi implantado. Um movimento luta pela criação, no Brasil, de um sistema correspondente ao Alerta Amber, dos Estados Unidos, que funciona assim: ao ser feito o registro de desaparecimento de uma criança, os veículos de comunicação são imediatamente acionados e começam a divulgar fotografias e informações, sempre atualizando os dados. O movimento sugere a criação de uma lei nacional que obrigue emissoras de rádio e televisão a veicular o assunto durante toda a programação.

ESPERANÇA
Marineide dos Santos (foto ao lado) acredita ter visto a filha Taís em uma imagem de TV. Ela assiste à gravação mais de 20 vezes por dia
O sistema americano foi criado após o desaparecimento de Amber Hagerman (daí o nome), então com 9 anos. Amber foi encontrada degolada em um rio. A comoção gerada pelo crime resultou na criação do alerta. Na Europa, os sistemas de informações vêm sendo reforçados depois do caso de Madeleine McCann, a inglesa de 4 anos que desapareceu durante as férias da família em Portugal no ano passado. O desaparecimento mobilizou o mundo inteiro.
Algumas histórias terminam em reencontro. Num domingo de 2006, Bruno Pereira da Silva, um menino carioca de 5 anos, filho de pais separados, saiu com o pai e não voltou. Dias depois, a dona de casa Márcia, mãe de Bruno, soube que o ex-marido morrera atropelado. Por mais de uma semana, Márcia vagou por vários lugares em busca do menino. Cartazes com o nome e a fotografia de Bruno foram espalhados pela cidade. A família imediatamente procurou o programa SOS Crianças Desaparecidas. A divulgação surtiu efeito. Uma senhora viu o retrato do menino no jornal e o reconheceu como recém-chegado a um abrigo de crianças abandonadas, próximo de sua casa. No mesmo dia, mãe e filho já estavam juntos. “Reencontrar meu filho foi como um novo parto”, afirma Márcia. Uma frase que Elizabeth, Marineide e tantas outras mães adorariam poder repetir.

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