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segunda-feira, 24 de agosto de 2009
José foi salvo pela arte
CRISTIANE SEGATTO
cristianes@edglobo.com.br
Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998.
Escreve sobre medicina há 14 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais de jornalismo
O que a pintura produzida pelos esquizofrênicos nos ensina
Quando voltamos de férias, o corpo retorna antes do espírito. Acho que foi o escritor Luís Fernando Veríssimo quem disse isso. A frase é genial. Lembro dela sempre que volto ao batente depois daquela preguiça anual garantida por lei. No primeiro dia de trabalho, compareço à reunião de pauta, batuco no teclado, falo ao telefone. O corpo está lá, cumpridor de seus deveres. Mas a alma, essa demora um pouco mais a chegar. Resiste a abandonar a praia, a montanha, a falta de compromisso. Foi assim – meio lá, meio cá – que na segunda-feira à noite decidi ir ao metrô Clínicas, em São Paulo, para visitar a exposição Arte de Viver.
Taí um belo projeto patrocinado pelo laboratório farmacêutico Janssen-Cilag. Portadores de esquizofrenia e pessoas que passaram por um transplante de órgão participaram de um concurso de poesia e pintura. Os melhores trabalhos foram publicados num livro. Os 43 quadros ficarão expostos na estação do metrô até o dia 30 de agosto. Se você mora em São Paulo, passe por lá. Se não mora, confira alguns dos quadros nesta página.
Fui fisgada principalmente pelos quadros dos pacientes psiquiátricos. Tentava decifrar que circunstâncias, que sentimentos, levaram cada um daqueles indivíduos a escolher aquelas cores, aqueles traços, aqueles enredos.
Dualidade foi o nome que Angela Guerrini Sega, de São Paulo, deu a seu quadro. O rosto de uma mulher de olhos fechados aparece dividido ao meio. Um lado é escuro e tem cobras saindo da cabeça como uma Medusa. O outro lado é suave, claro, com margaridas e folhagens verdes.
Fiquei impressionada também com a Inocência retratada por Robson Jean de Oliveira, do Paraná. Queria entender o que o levou a escolher aquele balanço, aquelas crianças e por que uma delas está de roupa escura e de costas.
Cada um dos participantes desse lindo projeto conseguiu, a sua maneira, expressar emoções. Isso é terapêutico. Pode ajudá-los a aderir ao tratamento e a perceber que o que eles sentem e produzem tocam outras pessoas – desde que essas pessoas deem uma chance a sua própria sensibilidade.
Infelizmente, a maioria de nós sabota essa capacidade. Enquanto me emocionava com os quadros, dezenas de pessoas passaram ao lado deles sem desviar o olhar do chão. A chance de se emocionar estava ali, no caminho delas, mas foi desperdiçada. Sinto pena quando presencio cenas assim. Mais pena da multidão apressada do que dos artistas que tiveram suas obras ignoradas. Essa gente sem tempo para nada perde a chance de ver com olhos de enxergar.
No dia seguinte, resolvi telefonar ao vencedor do concurso na categoria Psiquiatria. José Alberto Orsi, de São Paulo, ganhou com o nu artístico Vera. Orsi é um engenheiro civil de 42 anos. Sofre de esquizoafetividade, condição caracterizada por episódios de depressão, mania e psicose. Teve surtos nos anos 90 e foi internado em hospitais psiquiátricos. Em 1995, tomou uma superdose de remédios. “Foi uma tentativa inconsciente de suicídio”, diz ele. A pintura, que faz parte do tratamento psiquiátrico, o ajuda a manter a doença sob controle.
Orsi cursou a Escola Panamericana de Arte e trabalhou em ateliês de pintura. Abandonou as telas durante alguns anos, nos piores momentos da doença. Recentemente, decidiu recomeçar. Quando soube do concurso, lembrou-se da pintura que havia feito certa vez de uma senhora chamada Vera, modelo bastante conhecida entre os pintores que se dedicam ao nu artístico. Decidiu fazer uma releitura daquele primeiro quadro e inscreveu-se no concurso.
O reconhecimento foi transformador. “Vencer foi uma conquista individual muito grande. Percebi que uma coisa que saiu das minhas próprias mãos tinha valor. Eu achava que o que eu fazia era irrelevante”, diz. “Produzir arte é um dom de Deus. É como ter a capacidade de codificar uma coisa divina”.
Tive a impressão de que os quadros dos pacientes da psiquiatria eram mais livres, mais imaginativos que os produzidos pelos transplantados. Orsi acha que isso tem a ver com a forma como os doentes mentais reagem ao estigma que sofrem diariamente. “Somos vistos o tempo todo como pessoas perigosas, incapazes”, diz. “Esse sofrimento forja um lado humano muito sensível que leva à expressão lúdica, pictórica”, afirma.
O prêmio foi um incentivo tão grande que Orsi decidiu se inscrever no vestibular de Artes Plásticas, da USP. Além de estudar para as provas, participa das reuniões da Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Esquizofrenia (http://www.abrebrasil.org.br/). Pretende trabalhar com arteterapia e ajudar na recuperação de outros pacientes. Tem uma boa razão para fazer isso. “A arte salvou minha vida.”
O psiquiatra Mário Rodrigues Louzã Neto, coordenador do Projeto Esquizofrenia do Hospital das Clínicas, em São Paulo, diz que a pintura motiva os pacientes. E funciona como um excelente canal de expressão. “É importante que esses pacientes tenham a chance de expressar as emoções por canais adequados. A pintura é uma forma a mais de expressar um modo de ser, expressar uma vida”.
Esse é, na minha opinião, o maior valor da exposição. O que interessa ali é o sentimento e não exatamente a qualidade das pinturas. “Os trabalhos não são obras de arte. Os pacientes têm a emoção, mas não têm a técnica”, diz o artista plástico Gustavo Rosa, um dos jurados do concurso.
Rosa adora julgar obras de doentes psiquiátricos por causa da liberdade que eles demonstram. “Eles produzem obras incríveis. Não têm compromisso com tendências, não têm compromisso com nada”, diz Rosa. “É melhor do que qualquer Bienal”, afirma.
Hoje, sexta-feira (21), minha alma já voltou ao trabalho. Está colada ao meu corpo na busca da melhor reportagem, na convivência com os prazos apertados, na resistência às cobranças. Meu desafio agora é manter o espírito leve e aberto para o mundo como ele estava nas férias. Ter a capacidade de enxergar histórias como a de Orsi e conseguir me emocionar com elas é o que eu quero para mim. Sempre.
Você convive com pessoas que enfrentam transtornos psiquiátricos? O que pode ser feito para melhorar a condição dos doentes mentais no Brasil? Queremos ouvir a sua opinião.
(Cristiane Segatto escreve a coluna Nossa Saúde às sextas-feiras)
Revista Época
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