O impressionante depoimento de uma ex-paciente que afirma ter sido estuprada por Roger Abdelmassih, o especialista em reprodução preso e acusado de cometer 56 crimes sexuais
Como milhares de outras mulheres, Vanuzia Leite Lopes procurou a clínica de Roger Abdelmassih para tentar engravidar. O ano era 1993 e ela tinha 33 anos. Em cinco meses de tratamento, Vanuzia se tornou infértil. Conta que uma infecção a fez perder as duas trompas e parte do ovário. Ginecologistas procurados por ela atribuíram a infecção a abusos sexuais. Ela afirma que eles foram cometidos por Abdelmassih. Na semana passada, o médico que se tornou uma celebridade pelo sucesso de seus tratamentos de reprodução assistida foi preso por decisão da Justiça. O Conselho de Medicina suspendeu seu registro.
Os advogados de Abdelmassih entraram com um pedido de habeas corpus. A Justiça usou três argumentos para manter o médico preso: a quantidade de crimes cometidos, a longa duração do comportamento criminoso e a possibilidade de um novo delito, já que durante as investigações ele continuou no comando de sua clínica. O processo corre em sigilo, para preservar a identidade dos envolvidos. Mas o Ministério Público revelou que as denúncias mais antigas contra o médico são do início da década de 1970, de acordo com o depoimento de uma ex-paciente.
Até hoje a identidade das acusadoras não havia sido divulgada. Vanuzia aceitou contar seu caso a ÉPOCA depois de ter lido uma declaração de um dos advogados do médico. “Eu não queria me expor. Mas, quando vi o advogado dele falando que estava enfrentando ‘vítimas sem rosto’, decidi entrar na briga para lutar por justiça”, diz Vanuzia. Em seu apartamento num bairro de classe média da capital paulista, Vanuzia contou o que chama de “experiência mais traumática de sua vida”, na clínica de Abdelmassih, 16 anos atrás. Ela e o ex-marido, com quem era casada fazia seis anos, haviam procurado outras duas clínicas antes. Também estavam em dúvida entre custear o tratamento e investir num apartamento na praia. Abdelmassih, segundo ela, usou o argumento decisivo: “Vocês preferem ver o sorriso do seu filho ou ver o mar?”.
O casal acertou um pacote de três tentativas pelo preço de duas – oferta que seria recorrente na clínica de Abdelmassih. Começou ali o tratamento hormonal para aumentar a produção de óvulos e facilitar a coleta para o procedimento de fertilização in vitro (saiba mais na próxima página). Vanuzia conta que desde a primeira consulta estranhou o comportamento de Abdelmassih, que a atendia sozinho na sala e a tocava de forma diferente do que ocorre numa consulta ginecológica comum.
Vanuzia era levada para uma sala, sedada para a coleta, e acordava em outra. No dia seguinte, voltava para aplicar os embriões já fecundados no útero. Passou pelo procedimento duas vezes. Na terceira, o sonho começou a virar pesadelo. “Percebi um sangramento e uma dor incomum no ânus, mas me disseram que não era nada.” Dois dias depois ela foi à clínica para implantar os óvulos. Voltou para casa sob recomendação de repouso total. “No dia seguinte comecei a sentir dores abdominais e febre. Ligamos para a clínica e um dos médicos me mandou tomar Luftal.” Durante 15 dias, as recomendações foram as mesmas: repouso e medicamento para gases. “Um dia minha mãe colocou uma bolsa de água quente para aliviar a dor abdominal. Começou a sair pus até pelo umbigo”, diz Vanuzia. Levada à clínica às pressas e atendida por Abdelmassih, ela fez exames de sangue que confirmaram a presença da bactéria Escherichia coli, comum no intestino humano. Vanuzia foi internada no Hospital Albert Einstein por recomendação de Abdelmassih. Ela teve peritonite aguda, uma inflamação grave no peritônio, espécie de capa protetora dos órgãos viscerais. Ficou internada por dez dias para a retirada das trompas e de parte do ovário.
Os advogados de Abdelmassih entraram com um pedido de habeas corpus. A Justiça usou três argumentos para manter o médico preso: a quantidade de crimes cometidos, a longa duração do comportamento criminoso e a possibilidade de um novo delito, já que durante as investigações ele continuou no comando de sua clínica. O processo corre em sigilo, para preservar a identidade dos envolvidos. Mas o Ministério Público revelou que as denúncias mais antigas contra o médico são do início da década de 1970, de acordo com o depoimento de uma ex-paciente.
Até hoje a identidade das acusadoras não havia sido divulgada. Vanuzia aceitou contar seu caso a ÉPOCA depois de ter lido uma declaração de um dos advogados do médico. “Eu não queria me expor. Mas, quando vi o advogado dele falando que estava enfrentando ‘vítimas sem rosto’, decidi entrar na briga para lutar por justiça”, diz Vanuzia. Em seu apartamento num bairro de classe média da capital paulista, Vanuzia contou o que chama de “experiência mais traumática de sua vida”, na clínica de Abdelmassih, 16 anos atrás. Ela e o ex-marido, com quem era casada fazia seis anos, haviam procurado outras duas clínicas antes. Também estavam em dúvida entre custear o tratamento e investir num apartamento na praia. Abdelmassih, segundo ela, usou o argumento decisivo: “Vocês preferem ver o sorriso do seu filho ou ver o mar?”.
O casal acertou um pacote de três tentativas pelo preço de duas – oferta que seria recorrente na clínica de Abdelmassih. Começou ali o tratamento hormonal para aumentar a produção de óvulos e facilitar a coleta para o procedimento de fertilização in vitro (saiba mais na próxima página). Vanuzia conta que desde a primeira consulta estranhou o comportamento de Abdelmassih, que a atendia sozinho na sala e a tocava de forma diferente do que ocorre numa consulta ginecológica comum.
Vanuzia era levada para uma sala, sedada para a coleta, e acordava em outra. No dia seguinte, voltava para aplicar os embriões já fecundados no útero. Passou pelo procedimento duas vezes. Na terceira, o sonho começou a virar pesadelo. “Percebi um sangramento e uma dor incomum no ânus, mas me disseram que não era nada.” Dois dias depois ela foi à clínica para implantar os óvulos. Voltou para casa sob recomendação de repouso total. “No dia seguinte comecei a sentir dores abdominais e febre. Ligamos para a clínica e um dos médicos me mandou tomar Luftal.” Durante 15 dias, as recomendações foram as mesmas: repouso e medicamento para gases. “Um dia minha mãe colocou uma bolsa de água quente para aliviar a dor abdominal. Começou a sair pus até pelo umbigo”, diz Vanuzia. Levada à clínica às pressas e atendida por Abdelmassih, ela fez exames de sangue que confirmaram a presença da bactéria Escherichia coli, comum no intestino humano. Vanuzia foi internada no Hospital Albert Einstein por recomendação de Abdelmassih. Ela teve peritonite aguda, uma inflamação grave no peritônio, espécie de capa protetora dos órgãos viscerais. Ficou internada por dez dias para a retirada das trompas e de parte do ovário.
"A prisão é pura espetacularização. Não há nada de novo que a justifique" JOSÉ LUIZ OLIVEIRA LIMA, advogado de defesa
Vanuzia só poderia ter contraído a infecção durante o tratamento, pois os exames feitos antes de iniciá-lo não detectaram a bactéria, e os órgãos da paciente foram higienizados. Segundo um ginecologista da equipe que a operou no Einstein, a bactéria só poderia ter ido parar ali se o cateter usado para a coleta dos óvulos estivesse contaminado – o que seria improvável numa clínica de alto padrão – ou por relação anal seguida de relação vaginal. “Eu nunca tive esse tipo de relação com meu marido”, diz ela.
O pedido de inquérito e a sindicância do Cremesp não avançaram, e Vanuzia desistiu de prosseguir. “Nada adiantou. Era muito esgotamento”, afirma ela. Hoje, quase 16 anos depois, aos 49 e sem filhos, Vanuzia conta que acaba de sair de uma clínica de repouso para cuidar de uma depressão que a fez engordar 50 quilos em oito meses. “Não posso ter filhos por causa dele. Era criativa e alegre, e fiquei deprimida.”
A história contada por Vanuzia soma-se às de 38 outras mulheres que acusam Abdelmassih. Em junho, depois de colher 60 depoimentos de supostas vítimas de abuso sexual e estupro, a Polícia Civil de São Paulo indiciou o médico. No dia 13 de agosto, com o inquérito completo em mãos, o Ministério Público ofereceu a denúncia à Justiça. Roger Abdelmassih é acusado de cometer 56 estupros. Pela legislação anterior, eram 53 atentados violentos ao pudor (atos libidinosos) e três estupros (conjunção carnal). A mudança aconteceu porque a denúncia foi apresentada já com base na nova Lei nº 12.015, promulgada uma semana antes, no dia 7 de agosto. O conceito de estupro passou a incorporar todo tipo de ato libidinoso. A pena para o crime, no entanto, não mudou. Ao receber a acusação formal, o juiz Bruno Paes Straforini, da 16ª Vara Criminal, ordenou a prisão preventiva do médico, com duração de um mês.
Detido na entrada de sua clínica na segunda-feira 17, Abdelmassih foi levado para o 40º Distrito Policial, na Zona Norte de São Paulo, carceragem especial que recebe detentos com curso superior completo. Passou a noite sozinho numa cela de 9 metros quadrados. Dormiu sobre um colchão fino, em cima de uma cama de alvenaria. Ao acordar, recebeu roupas, remédios, frutas e um livro de seu motorista.
A defesa de Abdelmassih diz que a prisão é ilegal. “Foi pura espetacularização”, disse a ÉPOCA o advogado de defesa, o criminalista José Luiz Oliveira Lima. “O doutor Roger é réu primário, tem residência e trabalho fixos e ainda se colocou à disposição da Justiça. Não há nada de novo nas investigações que explique essa prisão. Ele trabalhou normalmente durante o inquérito e chegou a ir e voltar do exterior nesse tempo” (em junho, Abdelmassih viajou à Holanda para participar de um congresso). A defesa afirma que o número de denúncias contra Abdelmassih cresceu por haver uma “indústria de indenizações”. Mas o caso de Vanuzia já havia motivado em 1994 uma sindicância do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) e um pedido de inquérito da Polícia Civil.
No dia seguinte à prisão, a defesa do médico pediu sua libertação. O Tribunal de Justiça de São Paulo negou o habeas corpus. Agora, os defensores aguardam uma decisão do Superior Tribunal de Justiça. Até a tarde da sexta-feira, Abdelmassih continuava na prisão. Segundo Lima, o médico está abatido e tomando remédios contra depressão.
No início da investigação, Abdelmassih não tinha acesso aos nomes das acusadoras, mas, em março, o Supremo Tribunal Federal concedeu uma liminar que permitiu à defesa conhecer o nome das supostas vítimas. O Ministério Público diz que algumas pacientes receberam ameaças depois que Abdelmassih ganhou esse direito. “Economize dinheiro para as ações que virão a seguir”, diz ter escutado uma ex-paciente.
A decisão da Justiça de prender Abdelmassih levou em consideração a gravidade e a quantidade das acusações. “Isso é mais que o suficiente. Eu nunca vi ninguém neste país ser acusado por 56 crimes sexuais”, afirma o promotor Luiz Henrique Dal Poz, do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público de São Paulo, responsável pelas investigações. Acompanhando as decisões da Justiça, o Cremesp decidiu suspender temporariamente o registro de Abdelmassih, depois de analisar 51 sindicâncias. É a terceira vez que o conselho toma essa medida excepcional, conhecida como “interdição cautelar”. A primeira afastou da profissão o então pediatra e psicoterapeuta Eugênio Chipkevitch, condenado a 114 anos de prisão por abusar de menores. A segunda medida foi tomada contra o médico Farah Jorge Farah, condenado a 13 anos de prisão pela morte da amante. Com a suspensão, Abdelmassih não poderá clinicar.
O pedido de inquérito e a sindicância do Cremesp não avançaram, e Vanuzia desistiu de prosseguir. “Nada adiantou. Era muito esgotamento”, afirma ela. Hoje, quase 16 anos depois, aos 49 e sem filhos, Vanuzia conta que acaba de sair de uma clínica de repouso para cuidar de uma depressão que a fez engordar 50 quilos em oito meses. “Não posso ter filhos por causa dele. Era criativa e alegre, e fiquei deprimida.”
A história contada por Vanuzia soma-se às de 38 outras mulheres que acusam Abdelmassih. Em junho, depois de colher 60 depoimentos de supostas vítimas de abuso sexual e estupro, a Polícia Civil de São Paulo indiciou o médico. No dia 13 de agosto, com o inquérito completo em mãos, o Ministério Público ofereceu a denúncia à Justiça. Roger Abdelmassih é acusado de cometer 56 estupros. Pela legislação anterior, eram 53 atentados violentos ao pudor (atos libidinosos) e três estupros (conjunção carnal). A mudança aconteceu porque a denúncia foi apresentada já com base na nova Lei nº 12.015, promulgada uma semana antes, no dia 7 de agosto. O conceito de estupro passou a incorporar todo tipo de ato libidinoso. A pena para o crime, no entanto, não mudou. Ao receber a acusação formal, o juiz Bruno Paes Straforini, da 16ª Vara Criminal, ordenou a prisão preventiva do médico, com duração de um mês.
Detido na entrada de sua clínica na segunda-feira 17, Abdelmassih foi levado para o 40º Distrito Policial, na Zona Norte de São Paulo, carceragem especial que recebe detentos com curso superior completo. Passou a noite sozinho numa cela de 9 metros quadrados. Dormiu sobre um colchão fino, em cima de uma cama de alvenaria. Ao acordar, recebeu roupas, remédios, frutas e um livro de seu motorista.
A defesa de Abdelmassih diz que a prisão é ilegal. “Foi pura espetacularização”, disse a ÉPOCA o advogado de defesa, o criminalista José Luiz Oliveira Lima. “O doutor Roger é réu primário, tem residência e trabalho fixos e ainda se colocou à disposição da Justiça. Não há nada de novo nas investigações que explique essa prisão. Ele trabalhou normalmente durante o inquérito e chegou a ir e voltar do exterior nesse tempo” (em junho, Abdelmassih viajou à Holanda para participar de um congresso). A defesa afirma que o número de denúncias contra Abdelmassih cresceu por haver uma “indústria de indenizações”. Mas o caso de Vanuzia já havia motivado em 1994 uma sindicância do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) e um pedido de inquérito da Polícia Civil.
No dia seguinte à prisão, a defesa do médico pediu sua libertação. O Tribunal de Justiça de São Paulo negou o habeas corpus. Agora, os defensores aguardam uma decisão do Superior Tribunal de Justiça. Até a tarde da sexta-feira, Abdelmassih continuava na prisão. Segundo Lima, o médico está abatido e tomando remédios contra depressão.
No início da investigação, Abdelmassih não tinha acesso aos nomes das acusadoras, mas, em março, o Supremo Tribunal Federal concedeu uma liminar que permitiu à defesa conhecer o nome das supostas vítimas. O Ministério Público diz que algumas pacientes receberam ameaças depois que Abdelmassih ganhou esse direito. “Economize dinheiro para as ações que virão a seguir”, diz ter escutado uma ex-paciente.
A decisão da Justiça de prender Abdelmassih levou em consideração a gravidade e a quantidade das acusações. “Isso é mais que o suficiente. Eu nunca vi ninguém neste país ser acusado por 56 crimes sexuais”, afirma o promotor Luiz Henrique Dal Poz, do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público de São Paulo, responsável pelas investigações. Acompanhando as decisões da Justiça, o Cremesp decidiu suspender temporariamente o registro de Abdelmassih, depois de analisar 51 sindicâncias. É a terceira vez que o conselho toma essa medida excepcional, conhecida como “interdição cautelar”. A primeira afastou da profissão o então pediatra e psicoterapeuta Eugênio Chipkevitch, condenado a 114 anos de prisão por abusar de menores. A segunda medida foi tomada contra o médico Farah Jorge Farah, condenado a 13 anos de prisão pela morte da amante. Com a suspensão, Abdelmassih não poderá clinicar.
Revista Época
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